quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Arte refinada, arte popular

O cantor Gusttavo Lima, apresentando-se em um show em Bauru, São Paulo, num evento com cerca de quarenta mil espectadores, quebrou sua guitarra no palco e, depois, atirou os pedaços para a plateia. Um dos pedaços atingiu uma menina de dez anos, que necessitou de atendimento hospitalar. Os pais da menina registraram a ocorrência numa delegacia policial. Porém, após a visita do cantor, desistiram do processo e estenderam uma faixa, em sua residência, afirmando amá-lo.
Por conta desse episódio, alguns comentaristas de blogs criticaram, não somente o fato em si de uma criança de dez anos estar num evento desse porte e de o cantor ter agido, como agiu, de forma imprudente, mas o próprio valor artístico da música do Gusttavo Lima e de outros do mesmo estilo, como Luan Santana e Michel Teló.
Não manifestarei opinião sobre a conduta do cantor e dos pais da menina, pois são pertinentes às suas vidas particulares que, em princípio, não possuem interesse específico para a coletividade.

Vou restringir minha análise à crítica negativa produzida de forma genérica quanto ao valor artístico dos cantores do segmento musical dos sertanejos universitário.
Concordo com os que consideram que vivenciamos um momento histórico-social que, depois da cultura e da contracultura, deveria ser chamado de microcultura ou aculturalismo. Parece que, quanto mais rasteiro, melhor. Porém, a crítica dirigida a um específico indivíduo que representa a cultura de um povo deve ser produzida de forma extremamente cautelosa, sob o risco de parecer, ou mesmo ser, mera externalização de arrogância pessoal ou de classe.
Se um escritor vende milhares de livros, se um cantor atrai milhares de espectadores, merece algum respeito e possui algum talento. Sim, porque a arte não é somente aquilo de que gostamos e tampouco é somente aquilo que produz sensações reconfortantes, agradáveis. A arte pode incomodar e causar desconforto. Aliás, a contracultura manifestou-se através dessa espécie desconfortável de produção artística.
Uma pessoa possui o direito de não gostar do Gusttavo Lima, mas deve respeito às outras pessoas que o apreciam. É direito inalienável de toda pessoa escolher a arte que a toca.
Em todas as épocas tivemos os artistas da elite, os artistas do povo e os artistas marginalizados, os "malditos", estes de quem nem elite, nem povo, gostavam.
A personagem Mafalda, dos quadrinhos do Quino, afirmou que é melhor ser uma simples música dos Beatles do que todo um longplay da Sarita Montiel. Essa frase é reveladora do profundo abismo que há entre o gosto popular e o da elite refinada.
Por princípio, detesto refinamentos. Eles são a ponta do iceberg da prepotência. Favor não confundir refinamento desnecessário com a sempre indispensável elegância que, de um certo modo, é o seu contrário. Refinamentos foram historicamente produzidos para produzir e marcar divisões ficcionais de classe. Quer se diferenciar da turba ignara? Faça um curso de degustação de vinhos e deite falação sobre o aroma terroso do buquê, a nota acentuada ao final da língua evocando uma espécie de tâmara que só existe no sul da Turquia ou outras baboseiras quetais. Aprenda a comer com vinte talheres e dez copos. À mesa, ponha um guardanapinho de seda no colo e use-o apenas para limpar os cantos da boca. Quer parecer culto e erudito? Evoque similaridades entre algum fato ocorrido e algo escrito por Shakespeare ou Dostoievski, critique os livros do Paulo Coelho e fale mal de todos os livros de autoajuda.
Antes o povo gostava de rock e era "o horror, o horror". Depois, o horror da elite branca, madura, rica e bem educada buscou margens, sucessivamente, na disco, no sertanejo, no pagode, no funk e agora é no sertanejo universitário. O povo gosta? Então é baixaria e desprovido de valor intrínseco de arte.
Não é caso de produzir apologia a todas as modalidades artísticas, mas de chamar a atenção para a diversidade de gosto estético em relação a praticamente toda e qualquer arte produzida. Pode-se gostar de um Reembrandt e detestar um Picasso, amar os Bee Gees e não os Beatles, Mozart e não Wagner, Machado de Assis e não Joyce, Chico Buarque e não Tom Jobim.
Considerar que arte é somente aquilo do que se gosta embute uma tentativa de projeção do ego, uma autovalorização que se busca obter através da desvalorização da opinião alheia, da desconsideração do gosto do outro, da diminuição do sentimento do próximo. É a negação da alteridade e a profanação do sagrado solo da subjetividade.
Toda vez que o produto do trabalho de alguém, na dimensão simbólica de representação do conteúdo sentimental da visão da realidade, emociona o outro, impacta, isso é arte por definição. Se a obra humana, exteriorizando um real permeado pelas paixões íntimas do autor, encontra eco emocional na alma do outro, ainda que de uma só pessoa, esse eco é justamente o elemento que irá defini-la como arte. Essa é a distinção entre o mero produto do trabalho e a arte. O primeiro, por vezes, pode ser indispensável ao físico, mas não toca o sentimento espiritual de ninguém (talvez de um narcisista deslumbrado).
A arte atravessa os limites da matéria e apaixona.
Diferentemente do que pensam alguns filósofos, não é a razão que explicará a vida. É a arte que sempre será a razão para a vida e lhe dará sentido.
Se a obra de Gusttavo Lima emociona as pessoas a ponto de quarenta mil delas se reunirem para ouvi-lo, isso é o que basta para conferir-lhe o status de artista.
Não gostar é um direito, descaracterizá-la como arte é elitismo e arrogância.

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