quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A inteligência é um bem?

A inteligência humana, avançada e racional, produz o pensamento e, por ser sua criadora, inexoravelmente o vicia na origem, sendo essa contaminação que faz engendrar, nos seres humanos, o pensamento antropomórfico, ainda que dissimulado, não aparente. Esse vício de origem constitui uma característica de toda inteligência e não propriamente da inteligência dos humanos. Deveras, se as formigas possuíssem inteligência consciente e racional, certamente seus pensamentos tenderiam a imaginá-las como os seres mais importantes do planeta, provavelmente criados à imagem e semelhança da Grande Formiga, criadora de todos os formigueiros e que sobre elas reina no formicéu.
Embora seja a inteligência humana a causa do surgimento da razão e da produção de conhecimento, trata-se de um atributo de valor dúbio. Não há fundamento algum para, por princípio, afirmá-la como um elemento incontroversamente positivo ou sem o qual a vida dos humanos seria pior.

É inegável que a inteligência permitiu uma multiplicação vertiginosa dos humanos. Ainda que se considere isso um efeito positivo da inteligência, existem diversos seres sem inteligência alguma que nos superam no quesito multiplicação descontrolada, como microorganismos, insetos e roedores, por exemplo.
Contudo, a própria multiplicação irrazoável, descontrolada, dos seres humanos deve ser encarada como um sinal de pouca inteligência e não de muita. A superpopulação tornou-se um fardo para a própria humanidade. São bilhões e bilhões de humanos somando trilhões e trilhões de necessidades a serem satisfeitas, cada individualidade contendo em si suas próprias demandas materiais e espirituais, claramente inviáveis de serem atendidas. Demandas impossíveis de serem satisfeitas em iguais condições geram violência, o que é sinal de estupidez e não de alta intelectualidade.
Pode-se argumentar que, a partir da inteligência humana, surgiu a maravilhosa medicina, capaz de curar doenças que, antes, matavam milhões. Isso é verdade. O benefício presente é indiscutível e cada pessoa curada é um milagre da inteligência. Porém, qual será o custo a longo prazo? As curas da medicina interromperam o fluxo natural da evolução humana pela seleção natural, que, se é incapaz de salvar indivíduos, é o instrumento mais eficaz de proteger a espécie. A ação natural da evolução salvaria da morte os resistentes às doenças, os quais transmitiriam aos seus descendentes essa mesma resistência. Sem menosprezar o evidente valor da medicina, não fosse sua intervenção, em pouco tempo histórico suas curas seriam dispensáveis, bastando lembrar que as mortes pela gripe espanhola foram sendo reduzidas a cada nova epidemia, cada uma sempre menos agressiva que a anterior. Quanto custará aos humanos, em quantidade de vidas, a supressão da evolução? A evolução dos microorganismos não cessou. Eles estão à nossa espreita, tornando-se cada vez mais super-resistentes, os antibióticos cada vez menos eficazes.
Ao lado disso, a inteligência produziu um fenômeno com efeitos contrários e inversamente proporcionais aos benefícios da medicina. Os milhões que por ela foram salvos são apenas um pequeno contrapeso em um dos pratos da balança. No outro prato devem ser pesados os milhões e mais milhões que foram mortos pelo produto mais refinado da inteligência: as guerras e suas armas cada vez mais tecnológicas.
A inteligência possibilitou um inacreditável avanço nas técnica de agricultura e, com isso, uma melhor alimentação para um número percentualmente maior de pessoas, não se pode discutir. Num mundo pré-histórico, entretanto, desprovido de inteligência racional e sem agricultura, jamais se registrou uma quantidade de animais irracionais mortos de fome, por culpa da própria ação, em maior número do que os bilhões de seres humanos que, durante a história da civilização, morreram esquálidos, com o esqueleto à mostra sob a pele, ao lado de grandes e verdejantes fazendas dos nobres e milionários ou vizinhos a grandes fábricas de alimentos. A África de um milhão de anos atrás certamente não matou de fome mais seres vivos, hominídeos ou não, do que a de hoje, com toda a imensa inteligência do ser humano.
Em virtude do apanágio da inteligência, os humanos se imaginam no domínio da natureza, um tolo e grandioso engano. A natureza conta os dias em milhões e os anos em bilhões. Humanos são mero sopro temporal nesse calendário. Se algum incômodo chegarmos a provocar, como aparentemente estamos provocando no clima, a deusa Gaia agirá como sempre agiu: eliminará o incômodo e seguirá o seu rumo. O ser humano é incapaz de matar o planeta, o inverso é fácil e rápido.
A inteligência torna os humanos arrogantes ao ponto da cegueira e da paralisia mesmo em relação às coisas mais evidentes, como a extrema e injusta desigualdade dos homens. Nas sociedades sem inteligência, como a das abelhas, por exemplo, os indivíduos trabalham pelo bem comum. Na sociedade que se percebe inteligente, o trabalho é para o bem privado.
Seres humanos inventam ditos para afirmar que o trabalho enobrece, mas não se indaga sobre quem está se tornando um nobre. O trabalhador certamente não. A maioria, empobrecida, vê-se na contingência de ter que despender sua força física e mental, por baixo salário, em prol de um enriquecimento brutal e desnecessário de alguns poucos. Esses poucos, ricos, se apropriam do trabalho alheio e embora seres humanos como os trabalhadores, são beneficiados individualmente com mais direitos sobre os bens produzidos coletivamente pela sociedade. Direitos garantidos por lei aos que enobrecem com o trabalho do outro, uma contrafação da alteridade.
A inteligência faz aceitar passivamente a abdicação de nosso direito natural ao planeta. Os seres vivos não inteligentes não obedecem ordens que os impeçam de vagar pelo mundo, somente obstáculos físicos os detêm. Para os humanos serem tolhidos em sua liberdade de caminhar pelos quatro cantos do planeta basta uma ideia, uma gaiola sem grades, uma cerca sem arame chamada passaporte.
A inteligência torna tolos a maioria dos humanos. Uma pequeníssima minoria, os poderosos, cria o conhecimento que será disseminado como cultura de massa, com valores morais e éticos adequados aos seus interesses. Criada essa ideologia de dominação, ela é sutilmente imposta à sociedade pela religião, pela filosofia e, enfim, pela educação. A grande maioria dos humanos, explorados e pobres, mas que se pensam inteligentes, adotam tais valores como se tivessem nascido de seu próprio raciocínio, assim suportando com resignação a própria miséria e infortúnio.
A inteligência consegue convencer os miseráveis de que é mais nobre morrer de fome do que atacar o patrimônio excessivo do rico. Animais irracionais podem não possuir inteligência, mas não são idiotas, não morrem de fome por um vago e falso ideal de honra. Se um outro intenta retirar-lhes o naco de carne da boca eles rosnam e atacam. Se a ninhada grita, o albatroz rouba o peixe que estava na boca da gaivota. Por isso, animais não acumulam para várias gerações. O gasto energético não compensa, se outro animal não o roubar, o alimento acumulado em demasia apodrecerá.
A soberba da inteligência conduz os seres humanos a aceitar a injustiça sob o pálio da manutenção da ordem e da paz. Seres que se consideram inteligentes e acabam por agir como a rã que, colocada em água fria na panela, não nota o gradual aquecimento e consente com o banho, enquanto vai se tornando o prato do dia.
A inteligência não é um bem ou um mal em si mesma. Ela é como um pitbull cuja genética ruim leva à violência, mas que pode ser treinado para se tornar um animal tranquilo.
A inteligência brilhará e cumprirá o seu destino a partir do momento histórico em que se tornar sublime; quando passar a ser utilizada para o fim supremo e sua única razão de ser, que é a de conferir aos humanos uma tomada de consciência quanto ao seu verdadeiro papel nesse planeta.
Não a ridícula atuação de supostos criadores de riqueza ou de multiplicadores da própria espécie, mas a nobre condição de guardiões da criação, de toda a criação, com todos os seus seres, representada inclusive, e talvez principalmente, pela pessoa que está ao lado, revirando o lixo em busca do que comer, ou pelo animal cujo habitat foi reduzido a uma ínfima porção, insuficiente para sua sobrevivência.
A inteligência nos brinda com a razão e essa não é capaz de imaginar qualquer outro motivo para a existência da própria inteligência que não seja o de permitir o conhecimento da criação e dela nos maravilharmos, compreendendo, afinal, que, na verdade, jamais saímos do paraíso. Nós, de fato, o estamos destruindo.

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