sábado, 29 de março de 2014

Globalização: como fica o ser humano?


Quando o primeiro ser humano descobriu ser possível trocar bugigangas com outro ser humano que morava distante, iniciou-se o processo de integração comercial que hoje chamamos de globalização. Trata-se, pois, de um fenômeno humano que não é recente, caracterizado pela construção de teias de interligação comercial e cultural entre as diversas localidades .
A rota da seda, séculos antes de Cristo, já era um passo firme em direção ao aglutinamento das forças econômicas. As caravelas de especiarias, idem. Nesse sentido, Marco Polo, que seguiu a rota da seda em direção à China no século XIII, foi um precursor.
O que hoje usualmente é denominado de “globalização”, constitui, na verdade, a rápida e crescente aceleração do processo primitivo de integração que passou a ocorrer a partir do final do século XX e início do XXI, explicada pela extrema redução nos custos e aumento na velocidade dos transportes e, principalmente, das comunicações.

A integração dos povos a partir dos interesses do comércio, porém, não se limitou a incrementar as forças meramente econômicas. Envolveu, ainda, a troca de experiências em elementos políticos, culturais, enfim, dos diversos conhecimentos e técnicas da humanidade. Isso porque a necessidade de realizar o comércio pôs os seres humanos de um determinado povoamento em contatos com outros, de povoamentos distantes, o que acendeu a natural curiosidade do ser humano sobre tudo que envolva novidades.
A partir desse contato, inicialmente com intuito apenas comercial, houve um crescente intercâmbio de capital e de pessoas, que passaram a migrar de um local para outro, em princípio timidamente e, depois, com voracidade.
Todavia, a palavra moderna para o fenômeno antigo - globalização - adquiriu um certo glamour, recebendo status de algo, não somente inevitável, mas também salutar para a humanidade. As questões que se impõem indagar são: será mesmo benéfica para a humanidade? Quem lucra com a globalização? Quem perde?
Não existem respostas seguras para esses questionamentos, donde decorre imperiosa necessidade de reflexão sobre o fenômeno que aí está, aparentemente inescapável e que possui implicações severas no cotidiano de praticamente todas as pessoas.
A análise de tais questões impõe verificar, antes, se há algum contraponto à globalização.
Há e é ainda mais antigo. Trata-se da “localização”. Enquanto a globalização se preocupa com a construção de artérias entre todas as localidades do mundo, a localização é seu oposto, focando-se na construção de laços entre os indivíduos que habitam a comunidade.
O ser humano, em princípio, não parece ter evoluído para ser culturalmente global, no sentido de adotar um comportamento homogêneo em todos os cantos do planeta. Talvez se possa dizer isso do ser humano instintual, mas não do cultural. Em cada localidade onde se estabelece, o ser humano tende a adotar os significados e os valores da comunidade. A comunidade, desde sempre, foi o centro de construção das convenções sociais. Essa localização conferia ao ser humano um senso de pertencimento. Aquele era o seu local, sobre o qual tudo sabia e, por conta disso, onde podia circular livremente, sem medo de ser surpreendido por imposições desconhecidas.
Isso, de fato está mudando com a integração global das comunicações, principalmente através dos produtos culturais disseminados pela indústria cultural de massa, como a televisão, o cinema e, principalmente, nos dias de hoje, a internet.
A partir do conhecimento da cultura alienígena, o local, o autóctone, movido por curiosidade e muitas vezes por inveja, comportamento natural no ser humano, passa a tentar copiar aquele padrão. Esse movimento de aculturamento se inicia, em geral, pelos rebeldes, que lançam mão de valores simbólicos de outra cultura como signo de distinção das outras pessoas do local. Com a massificação dos novos hábitos, a absorção da cultura estrangeira atinge os próprios conservadores, como mecanismo de homogeneização ao padrão local, agora modificado pelo efeito globalizador da comunicação de massa.
Ainda que se admita que a mudança cultural para um padrão estabelecido de cima para baixo exista, seria essa alteração saudável para o ser humano? Qual o custo para o indivíduo de perder a referência local de significado e de valor?
Aparentemente, o custo é a perda de identidade com o próximo e, consequentemente, a desagregação do tecido social. Se não me identifico com meu vizinho, por que manter com ele qualquer relacionamento? Melhor trancar-me em casa, acessar a rede social e manter relacionamentos virtuais com aqueles cujos valores se identificam com os meus.
E a longo prazo? Será possível que o custo disso seja um desabamento psicológico acarretado pela solidão em meio à multidão? Afinal, o ser humano necessita, ou não, de contato físico uns com os outros? Tocar, abraçar e beijar, atos cuja prática a virtualidade impede, são necessários ou mesmo possíveis num mundo globalizado?
A necessidade do ser humano por uma identidade cultural local é tamanha que, num movimento em sentido contrário ao da globalização, recrudescem nas grandes metrópoles ações comunitárias multiculturalistas que lutam pela preservação do acervo histórico das tradições culturais locais. Aliás, as grandes metrópoles cada vez mais apresentam feições semelhantes umas com as outras, agasalhando valores simbólicos muito parecidos, assim aproximando-se do conceito de não-lugar, ou seja, lugares cosmopolitas destinadas ao fluxo, ao trânsito, no qual as pessoas não possuem ligações culturais umas com as outras, justificando sua presença no local apenas por alguma necessidade transitória.
A globalização das comunicações causou um dilúvio de informações e não há um Noé para construir uma arca de salvação. O afogamento é inevitável para todos que não aprenderem a nadar nesse mar tempestuoso de informações desarrumadas.
Nesse oceano de informações atomizadas e não organizadas, quem constrói a agenda das discussões públicas é a mídia que, por sua vez, também está globalizada e atende aos interesses da elite global. Nesse sentido, somente constarão da pauta de notícias, das manchetes, os assuntos que atendam aos interesses das corporações. E as corporações não possuem mais pátria ou qualquer sentido de pertencimento. Bauman (Globalização: as conseqüências humanas. 1999) pontifica que está criada a figura do “proprietário ausente”, ou seja, aquele cujas posses e interesses não mais possuem qualquer vinculação com territórios e seus respectivos agentes políticos.
Há dúvida se os governos dos Estados-nação ainda possuem poder político de fato ou se já foram completamente subjugados pelas forças econômicas. Num episódio como a invasão do Iraque pelas forças americanas, não é possível definir com clareza quais foram os interesses realmente determinantes da ação estatal. Teria sido o fardo do homem branco de disseminar os sentidos de democracia, liberdade e justiça? Ou o interesse pelo petróleo e pelas obras de infraestrutura? Ou, ainda, algo mais sinistro? Mesmo em ações atribuídas a forças não estatais, como as terroristas, pairam dúvidas sérias sobre os interesses econômicos que a elas estão ocultos. O que estaria por trás da derrubada das torres gêmeas? É possível honestamente imaginar que possui natureza religiosa? Teria sido ação terrorista de fato ou uma ação de bandeira falsa? Em outro exemplo, seriam Obama e Putin os verdadeiros protagonistas do problema da Ucrânia ou não passariam de títeres ou drones controlados à distância segura por poderosos anônimos?
Reconhecido que a mídia obedece a prioridades determinadas pela elite globalizada, que por sua vez materializa, como nos fala Bauman, a figura do proprietário ausente e totalmente apático aos interesses locais, parece claro que suas manchetes refletirão esses interesses, sendo ingenuidade presumir uma autêntica liberdade de imprensa.
Tem-se, pois, que a agenda cultural e política imposta pela mídia, reverberada pela voz da população, põe questões sob discussão que dificilmente encontra eco nas verdadeiras necessidades públicas. Disso decorre que o povo muitas vezes busca avidamente por respostas e soluções para demandas que são vendidas nas manchetes como essenciais e urgentes, mas que na realidade são secundárias ou mesmo ilusórias.
Há um antigo ditado que diz que a maior mentira do diabo é fazer crer que ele não existe. Ou, numa versão mais intelectual, a partir de Bauman (idem), deixar de formular as questões certas ou responder ao tipo errado de questões ajuda a desviar os olhos das questões verdadeiramente importantes. Algo como dois inteligentes antílopes discordando sobre a qualidade da elegante travessa em que serão servidos aos leões.
Talvez seja melhor desviarmos os olhos do planeta inteiro e olharmos um pouco para o nosso vizinho.

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