segunda-feira, 29 de abril de 2019

Presidente Bolsonaro, 47 milhões de olhares o vigiarão


                                                                Escrito originalmente em 29/10/2018 e não publicado


Noite de domingo, dia 28 de outubro de 2018. Nas ruas, o povo comemora e fogos de artifício espoucam incessantemente. Pessoas gritam a plenos pulmões palavras de ordem e de guerra, numa imensa euforia coletiva, que poderia ser definida como histérica. Para quem não soubesse do que se trata, pareceria a comemoração da vitória brasileira numa copa do mundo ou os alegres festejos do réveillon. Porém, trata-se de outra coisa. Desfiles militares que se juntam aos populares em alguns locais, como em Niterói, para festejar o resultado revelam que os festejos possuem uma dimensão diferente. O povo comemora alegremente a eleição de um novo presidente da República, o ex-capitão do exército brasileiro e atual deputado federal Jair Messias Bolsonaro, eleito com quase 58 milhões de votos. O candidato da oposição, Fernando Haddad, obteve 47 milhões de votos e outros 42 milhões de eleitores decidiram pela abstenção. Bolsonaro foi eleito, pois, por 39% dos eleitores (147 milhões) ou 28% da população brasileira (209 milhões). Ou seja, foi rejeitado ou não aprovado expressamente por 61% dos eleitores ou 72% da população.
Embora mais conhecido por Jair Bolsonaro, o seu nome do meio parece representar melhor as esperanças sebastianistas que nele depositam seus eleitores e que explicam a catarse coletiva iniciada tão logo anunciada a sua vitória. Uma festa de recepção para o novo Messias.

Festas comemorativas catárticas como essa, realizadas por pessoas vestidas e pintadas de verde e amarelo, não são novidades no cenário político brasileiro. Foi assim com a eleição de Fernando Collor de Mello e também após o impeachment de Dilma Roussef. Nesses casos, à euforia seguiu-se a frustração e o arrependimento pela adesão aos movimentos que conduziram a tais resultados.
No sábado, dia 27, um dia antes da eleição, o momento político indicava uma possibilidade concreta de virada em favor de Haddad, inclusive por conta da adesão, nos últimos momentos da campanha, de figuras que até então haviam silenciado sobre a própria opção, algumas com imenso apelo popular, como artistas e youtubers, e outras conhecidas como adversárias do petismo, como Joaquim Barbosa e Rodrigo Janot. Imaginou-se que tais adesões fossem capazes de sensibilizar a parcela mais antenada e também a mais conservadora dos eleitores. E, de certa forma, foram. Haddad recebeu uma espetacular votação, que o coloca numa condição especial para a liderança da oposição no país e também em situação vantajosa para a próxima eleição. Ao não ter entrado em contato com Bolsonaro para parabenizá-lo pela vitória, Haddad de modo nenhum personificou a figura do mau perdedor. Quem de nós parabenizaria um declarado candidato a algoz, alguém que violentamente e sem razão alguma o ameaça de prisão?
Seja como for, os votos recebidos por Haddad não foram suficientes. Não deu, paciência, são coisas da democracia. Essa etapa está superada. A eleição acabou e um presidente foi escolhido. E agora?
Num primeiro momento, imediatamente após a eleição, o resultado deve ser contestado judicialmente. As evidências de interferência financeira, no escândalo do “zapgate”, são gritantes e, se confirmadas, deveriam impedir a posse de Bolsonaro. Ninguém pode ser beneficiado pela própria torpeza, diz a ordenamento jurídico. Não se trata de irresignação com o processo democrático, como ocorreu com Aécio Neves e os que o seguiram após a eleição de Dilma Roussef, mas garantir o império da lei e da democracia. A indevida intromissão do poder financeiro no processo democrático desequilibra o valor individual da participação política e o degenera. Bolsonaro não pode ser considerado um presidente eleito legitimamente, segundo a normatividade pátria, se não for afastada essa sombra que pairará sobre o seu governo.
Ajuizada a ação de impugnação, é legítima a manifestação popular nas ruas, em defesa de um lado e do outro, para estimular o poder judiciário a tomar a decisão correta. A democracia assim autoriza.
Todavia, sacramentado judicialmente o resultado, o que fazer em seguida?
Manter um estado de beligerância ininterrupto, como fizeram com o PT, é prejudicial para todos. Ainda que compreensivelmente entristecidos e frustrados com a decisão, os eleitores de esquerda devem entender que uma decisão coletiva foi tomada, constituindo um imperativo ético-moral aceitar a voz das urnas representativa da opção do outro pelo candidato que a ele pareceu representar os próprios anseios. Vale recordar ter sido justamente a irresignação com o processo democrático que conduziu à cisão política no seio da sociedade a partir da eleição de Dilma Roussef, em 2014. Não se pode criticar o adversário por uma postura e, posteriormente, adotar a mesma conduta, o que seria hipocrisia. Um espírito efetivamente democrata se desvela na derrota, não na vitória.
Pelo lado individual, é hora de desarmar os espíritos, chegou o tempo da distensão emocional. São muitos os brasileiros saturados de tanta discórdia e divisão paralisantes da dinâmica social. Há um evidente prejuízo de toda a sociedade com o acirramento da política. O outro deve deixar de ser encarado como um representante do mal e passar a ser compreendido como alguém cuja visão do bem social é distinta e que, em vista disso, busca encaminhamentos e soluções políticas igualmente distintas. Nenhuma pessoa sã é a favor da corrupção, da miséria ou da criminalidade. Não se está falando de reatamento de relações rompidas, o que deve ser avaliado intimamente por cada um, ou de concordância com a opinião do outro, mas simplesmente de aceitação da diferença. O mínimo que se exige de uma pessoa civilizada é que entenda que o diferente existe e, mesmo que não seja possível manter alguma relação de afinidade, deve ser suportado sem animosidades, sem brigas.
Além disso, o tempo é de exercício da sensatez, da tolerância e do comedimento. Antes da eleição, justificava-se plenamente uma feroz oposição à ascensão política de Bolsonaro ante a percepção de que ele trazia em si um incrível potencial de autoritarismo político e de intencionalidade de redução de conquistas civilizatórias importantes para a sociedade. O resultado da eleição, por si só, não afasta essa névoa obscura, que persistirá pairando sobre o povo e sobre as instituições. Todavia, se isso era uma possibilidade que se tentava evitar de forma justa, nunca significou inevitabilidade de concretização do temor totalitarista. O futuro ainda está em aberto, sujeito a alternativas e passível de submissão a pressões populares e, quem sabe, das instituições democráticas, principalmente se a imprensa resolver finalmente cumprir o papel histórico que lhe compete. Uma vez eleito, a oposição ao governo Bolsonaro não pode ser fundada em mera irresignação ou histeria, não pode ser desfundamentada, baseada em meras possibilidades e com o objetivo de “ser contra tudo o que está aí”. A oposição popular e também a parlamentar há de ser propositiva ou possuir o objetivo de contrariar ações concretas consideradas prejudiciais ao povo.
Os candidatos podem ser muitos, as orientações políticas diversas, mas o país é um só. Independentemente das preferências eleitorais, todos estão embarcados no navio Brasil na condição de passageiros do mesmo destino. O naufrágio não escolhe eleitores desse ou daquele candidato, sacrificando indistintamente a todos. O sucesso ou o fracasso do governo atinge todos. Desse modo, o desejo individual pela bem-aventurança da administração do governo eleito culmina por se tornar o desejo coletivo de produção do bem da sociedade.
Tendo isso em vista, a Bolsonaro deve ser concedida, como foi aos presidentes que o antecederam no período da Nova República, à exceção de Dilma em seu segundo mandato, uma trégua pós-eletiva, como uma espécie de estágio probatório. No discurso da vitória, ele prometeu defender a democracia e a Constituição. Que seja assim, que a história revele ter sido ele apenas um falastrão insensato em sua vida pública enquanto desmuniciado de poderes efetivos.
Tomara a alegria que se vê nas ruas, representativa de uma esperança que parece desesperada, produza uma energia humana capaz de tocar o espírito de Bolsonaro e induzir a uma nova etapa política no país.
Mas, que ninguém se engane: a probabilidade maior é que assim não seja. O passado de Bolsonaro o condena em função do discurso autoritário, violento e preconceituoso. Não é possível, por mera fé, confiar na mudança de caráter de uma pessoa com mais de 60 anos, que verbalizou coisas absurdas por décadas, simplesmente por ter sido eleito. Pelo contrário, a presunção é de que, tendo chegado ao poder, implementará as barbaridades que sempre disse que faria. Por conta disso, mais do qualquer outro presidente na história do país, ele deve ser vigiado diuturnamente pelo povo e pelas instituições. Cada passo seu, cada movimento político, deve ser fiscalizado não somente quanto ao objetivo mais imediatamente visível, mas também ao mediato que eventualmente oculte intenções maléficas subjacentes. E, se percebido um movimento antidemocrático ou contra os interesses do povo, por mínimo que seja, as ruas devem ser tomadas.
Boa sorte ao governo do presidente Bolsonaro, mas que não se sinta muito confortável para fazer o que bem entender. Não viole os princípios da democracia. A partir de agora, 47 milhões de olhares, no mínimo, estarão direcionados atentamente para o seu comportamento. E essa conta poderá crescer com as possíveis decepções.
O povo não permitirá o avanço do fascismo.

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