terça-feira, 16 de setembro de 2014

Repetindo a ilha de Páscoa?


A elite de todas as sociedades que foram ou são consideradas mais adiantadas no aspecto civilizatório, historicamente enriqueceu e foi alçada ao poder de forma violenta e não sustentável, ou seja, através da exploração irracional das riquezas naturais e humanas.

Essa avidez inevitavelmente conduziu à escravidão (ou algo similar) e à exaustão e devastação das riquezas naturais em cada local por onde chegava o explorador humano.
No passado, quando confrontada com essa realidade, ou seja, com a exaustão local, a elite simplesmente expandia seus horizontes exploratórios, seja através de caravanas para lugares distantes ou por meio de viagens ultramarinas, conquistando novos territórios e submetendo populações antes desconhecidas.

A primeira elite a tentar globalizar seu poderio econômico, a que inaugurou esse modelo, foi a europeia. Durante aquele momento histórico, porém, o capital era sedentário, ou seja, fixava-se no local onde ocorreria a exploração do ser humano e da natureza. Ainda que fosse possível a existência da figura que Bauman denomina de “proprietário ausente”, ou seja, do investidor que não permanecia no local do investimento, o dono da riqueza estava submetido às vicissitudes locais, tendo que lidar, pessoalmente ou através de prepostos a seu mando, com as situações locais que ocorriam em sua fábrica ou em sua fazenda.
Ocorre que, atualmente, não existem mais fronteiras desconhecidas que salvem o capital da insustentabilidade local. Não há para onde enviar novas caravelas. O planeta, enquanto território a ser explorado, foi integralmente conquistado. Então, as caravanas e as viagens oceânicas não constituem mais o meio adequado para a expansão da voracidade humana.
A desmesurada cobiça do capital, porém, não arrefeceu, tornando-se necessário descobrir um novo meio de prosseguir com o ímpeto exploratório. Experiências históricas, do tipo vivido pelos antigos habitantes da ilha de Páscoa ou pelos astecas, evidenciam que a percepção do desastre jamais foi capaz de tornar a elite mais sábia, mais cuidadosa. Pelo contrário, são pródigos os exemplos históricos de que as sociedades humanas sempre caminharam impassivelmente para a aniquilação evidente. Então, para onde ir?
A conquista do espaço interplanetário ou interestelar, por ora, é só um devaneio. A solução haveria de estar aqui mesmo, nesse planeta agora tornado uma pequena aldeia. A genial (ou seria diabólica?) resposta, sublimemente detectada por Baumann, foi a modificação do movimento até então natural do capital. Antes sedentário, passou à condição de nômade.
A elite percebeu que, embora não existam mais novos territórios a ser conquistados, as condições econômicas e sociais dos diversos territórios autônomos são abissalmente diferentes. Alguns encontram-se em condições mais propícias à exploração do que outros, na medida em que a sua necessidade, ou desespero, é superior à de outros.
Desse modo, Zigmunt Bauman defende que o capital, antes sedentário, passou a ser nômade com o advento da globalização.
Com o devido respeito pelo ilustre pensador polonês, cujas obras admiro profundamente, discordo apenas um pouco dessa visão. Creio que o nomadismo sempre esteve no espírito das iniciativas humanas em busca de poder e riqueza.
Nesse sentido, penso que sempre foi e continua sendo o enfoque principal do movimento da riqueza, antes e depois do capitalismo. De fato, o que mudou radicalmente foi a velocidade em que praticado esse nomadismo.
Por motivos puramente técnicos, o capital se viu aprisionado no local durante séculos, uma vez que a produção e os ganhos decorrentes estavam plenamente vinculados ao solo (fábrica, fazendas, empregados, etc). A causa do tectonismo do capital era, então, involuntária.
Entretanto, a dinâmica do avanço tecnológico, inicialmente aos poucos e paulatinamente de forma mais veloz, vai conferindo ao capital os meios para escapar de sua prisão de imobilidade, primeiro com caravanas, depois, com caravelas, então com aviões, até que logrou alcançar a velocidade da luz, com as fibras óticas e o advento da interligação dos computadores do mundo.
Essa libertação espacial ainda proporcionou uma outra possibilidade ao dono do capital, muito importante para compreender a política dos dias atuais, que é a possibilidade de investir em projetos ou títulos longínquos, antes simplesmente desconhecidos dado o distanciamento.
A partir dessa possibilidade, a briga do capital foi para libertar-se das amarras da legislação local. Haveria, portanto, de ser popularizada a ideia de que as legislações dos países, sendo agradáveis ao capital, ou seja, tornando menos rígidas as regras para a entrada e, principalmente, a saída do fluxo monetário, possibilitaria o enriquecimento do país e de seu povo. Tudo isso dito em nome da modernidade, da globalização e do avanço social. O empreendimento foi um sucesso.
Não sou economista, mas arrisco dizer que o pontapé inicial na empreitada da desregulamentação do capital iniciou-se com Bretton Wodds, em meados da década de 1940, e consolidou-se provavelmente com o neoliberalismo de Reagan e Thatcher.
Em pouco menos de meio século, um espirro histórico, virtualmente todas as legislações dos países do mundo foram alteradas e passaram a permitir o nomadismo do dinheiro, pavimentando a estrada do que hoje denominamos globalização.
Como adverte Baumann, a globalização é direito concernente exclusivamente ao capital especulativo. O chão da fábrica e o povo continuam sob o jugo da “localização”, que é, aliás, um requisito essencial para o sucesso da globalização.
Não é possível imaginar um sucesso tão estrondoso para o atual movimento especulativo financeiro num cenário no qual o trabalhador, e não somente o capital, pudesse escolher o território onde colocar a sua mão-de-obra à disposição. Esse é o horror e o pesadelo da elite financista, muito bem afastado pelas políticas imigratórias altamente restritivas dos países mais ricos.
Hoje, os Estados são reféns dos especuladores. Qualquer ameaça à livre movimentação do dinheiro implica imediata fuga para um território livre, com os riscos inerentes à fuga de capital, mais ou menos como ocorreria num banco no qual a maioria dos correntistas resolvesse, repentinamente, sacar os valores depositados. O banco fatalmente quebraria.
O atual modelo exploratório, em princípio, é capaz de se sustentar até a exaustão total da natureza e o consequente aniquilamento humano, pois o movimento do dinheiro por territórios diferentes em momentos distintos, em tese, permite a criação de flutuações locais ou ondas de carência que, ora atrairão, ora repulsarão, o capital.
Assim, os governos nacionais, de gerentes dos próprios sistemas econômicos, passaram à condição de refém dos interesses dos conglomerados financeiros, que, agora, sequer estão preocupados com a área produtiva. O que importa agora são os juros que eventualmente possam ser ganhos no que eles denominam de "investimentos", papéis que, frequentemente, não estão vinculados à fabricação de sequer um alfinete.
Ocorre que o principal instrumento de desenvolvimento de uma sociedade é a economia, fonte da riqueza nacional, donde decorre, como pontifica Bauman, que a política se encontra quase que totalmente esvaziada de seu poder real. E esse vazio há de ser preenchido por alguma outra pauta política. Assim, o discurso político se volta para questões egoístas e concernentes, não à saúde da sociedade, mas aos indivíduos que a compõem em sua dimensão atomizada. Cai-se, portanto, no patrimonialismo puro (corrupção), em benefício dos próprios políticos, e no aprofundamento dos abismos existentes nos discursos antagônicos em relação a questões importantes, como racismo, aborto, homofobia e outros que são os assuntos que pautam as discussões públicas atualmente. Tais questões saem de uma dimensão racional de análise do bem comunitário e resvalam para a vala comum do discurso do ódio e do segregamento.
Importante ainda ressaltar que esses valores atomizados são de certa forma homogêneos em torno do planeta, o que aponta para uma possível explicação para a coincidência nas pautas reivindicatórias em torno do mundo, como nas chamadas "primaveras".
É claro que o esvaziamento do conteúdo efetivamente político da discussão pública não se dá sem a colaboração preciosa de valores (ou desvalores) que foram agregados paulatinamente na mente do povo, principalmente através da indústria do entretenimento, como a apreciação do outro sob a ótica dos objetos que possui e o terror da insegurança pública superdimensionada. Isso, porém, é assunto para outro momento.
Por tudo isso, infelizmente, ao menos no momento, não se verificam as condições políticas globais necessárias à domesticação e enquadramento civilizatório do capital. Por ora, os indicativos são de que a acumulação absolutamente desnecessária e irracional da riqueza por uma parcela ínfima da população (menos de um por cento concentra cerca de noventa por cento da riqueza) nos conduzirá ao desastre.

Aparentemente, estamos condenados a repetir a ilha de Páscoa.

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