segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A inviabilidade da riqueza infinita


O capitalismo visto em sua face atual, bem como o ideário econômico que lhe dá sustentação, parece, por vezes, incompreensível para as pessoas comuns, como eu.
É isso mesmo, é incompreensível de fato e não é à toa, mas propositalmente, para passar a impressão de que as medidas econômicas, privadas ou públicas, são adotadas com o nobre objetivo de atender ao bem comum.
Algo como o famoso "deixar o bolo crescer para depois dividir". Tudo isso é falso como uma nota de três reais.
As teorias econômicas modernas e pós-modernas possuem um único objetivo: produzir uma justificação teórica, acadêmica, para a acumulação de mais riqueza por aquele que já é rico ou, no limite, para proteção dessa riqueza contra perdas.
A ideia central que justifica a economia é muito simples e os jargões econômicos e o linguajar difícil são meros artifícios retóricos, sofismáticos, que buscam dar ares de cientificidade à fraude econômica perpetrada em desfavor da quase totalidade da humanidade.

Nesse ponto devo ressaltar que não sou economista. Estou aqui exercitando exclusivamente a minha intuição.
A ideia central é essa: o único produtor de riqueza é o trabalho, através da transformação da natureza; a riqueza total é uma só, cujo valor, dividido por um arbitrário número, é representado pela moeda; a quantidade de moeda somente pode ser expandida se houver mais riqueza a justificar a expansão; se houver acumulação excessiva, o sistema falha por conta da ausência de dinheiro em circulação; se houver expansão da moeda sem expansão da riqueza, o sistema falha em virtude da inflação; inflação é somente a relativa à expansão monetária sem lastro na riqueza; não existe inflação por demanda, cuja alta de preços deve ser acomodada pelo mercado.
Essa ideia simples de economia real, a meu ver, é deturpada para dar lugar aos alicerces da economia pretendida.
Para entender essa ideia central, deve-se, inicialmente, lembrar que o sistema econômico planetário é fechado, ou seja, não existem espaços a ser conquistados, novas fronteiras a ser abertas.
Marte ainda está muito longe e desabitado e Vênus é muito quente e abafado. Não será possível inaugurar um banco nesses planetas, então, só existe mesmo o nosso planeta a ser considerado na economia, que é, pois, um ambiente fechado.
Também deve-se recordar que hoje em dia as economias locais são completamente conectadas umas com as outras.
A partir dessa ideia de sistema fechado, tome-se por hipótese um mundo com cem pessoas e que cada uma delas tenha uma riqueza equivalente a cem reais. Assim, o total de moeda circulante é de dez mil reais. Esse é o total da riqueza mundial em nosso mundo imaginário.
Nessa hipótese, a renda per capita é também igual a cem reais. Nesse mundo imaginário, não existe limite legal para a acumulação de riqueza, sendo possível supor uma situação em que apenas uma das cem pessoas, através de trabalho e negociações, consiga acumular trinta por cento da riqueza, depois cinquenta.
Nesse ponto, o mercado estará em dificuldades, negociando apenas metade do que era possível negociar antes, pois o dinheiro em circulação foi reduzida à metade.
Finalmente, o nosso sortudo alcança acumular todos os dez mil reais, deixando os outros e, por consequência, todo o nosso imaginário sistema fechado, sem dinheiro algum. Nessa hipótese, o capitalismo do nosso mundo imaginário entraria em colapso total, naufragaria e conduziria todos, inclusive o único rico, à catástrofe.
Conclusão: a acumulação ilimitada é prejudicial ao sistema.
O curioso é que a concentração de riqueza não alteraria em nada a renda per capita, que continuaria a ser de cem reais, o que demonstra que a função das médias econômicas é mascarar a realidade, conferindo à ignomínia a aparência de melhoria na justiça social.
Quando estou ao lado de alguém com dois metros, na média tenho um metro e oitenta, o que em nada estica os meus um metro e sessenta.
Claro, alguém poderia argumentar que a acumulação do exemplo é impossível, já que o capitalista, dono dos dez mil reais, precisaria comprar alguma coisa (matéria prima, alimentos, etc).
Primeiro, é bom esquecer a matéria prima, pois o capitalista deixará imediatamente de produzir tão logo perceba que não existem mais compradores. Ele não ficou rico à toa, ele não é bobo, ele é o lobo do homem.
Segundo, quanto às necessidades do rico, o dinheiro necessário para a própria sobrevivência é insignificante se comparado à grande fortuna acumulada. Para provar isso, saiamos do mundo imaginário para um passeio pelo mundo real.
Presumindo-se que uma família abastada de quatro pessoas, no mundo real, precise de, digamos, dez mil reais mensais para sobreviver, imaginemos alguém com uma fortuna de cinquenta bilhões de reais. O dinheiro necessário por mês para a sobrevivência dessa família milionária equivale a uma fração infinitesimal de sua fortuna. Esse bilionário precisará comprar alimentos e outros gêneros de necessidade por cerca de quatrocentos e dezessete mil anos para recolocar toda a sua fortuna no mercado. Ou seja, quase quinhentos mil anos sem preocupação com a sobrevivência.
É claro que não considerei outras necessidades básicas, como trocar de carro todos os anos, reparos no iate, hélices novas para o helicóptero e viagens internacionais duas ou três vezes por ano pelo menos. Aí fica mais preocupante. Talvez a fortuna não dure tanto, só uns cem mil anos, sei lá a quantas anda o custo de uma hélice nos dias de hoje...
E estamos aqui exemplificando com uma pequena fortuna, já que a soma total da riqueza do mundo, hoje, em 2014, é estimada em duzentos e trinta e um trilhões de dólares. Esse é, em princípio, todo o dinheiro do mundo.
No mundo real, portanto, seriam necessários milhões e milhões de anos para que uma pessoa, acumulando toda a riqueza, a devolvesse em forma de consumo. Nesse tempo, talvez os dinossauros ressurgissem e nossos problemas econômicos fossem extintos.
Voltando ao nosso sistema fechado imaginário e utilizando a mesma proporção de gasto mensal da vida real, o nosso bilionário, com riqueza total de dez mil reais, ou seja, cerca de quatro mil e cem dólares, gastaria por mês menos de um milésimo de centavo de dólar e levaria as mesmas centenas de milhares de anos para recolocar sua fortuna no mercado. Fora, é claro, as hélices...
Portanto, a ideia de que o sistema capitalista se mantém em virtude das necessidades aquisitivas do milionário não se sustenta.
Voltemos ao cenário de catástrofe capitalista decorrente da acumulação conduzida ao extremo. Isso seria possível ocorrer no mundo real?
Bom, no cenário aqui montado, temos a concentração de toda a riqueza nas mãos de uma pessoa em cem, ou seja, dez porcento da população detendo toda a riqueza. Na vida real, a concentração de renda aparentemente vai ocorrer em percentual ainda menor do que no nosso mundinho da imaginação. Ela ainda não é total, sendo, mesmo assim, bastante preocupante. Por enquanto, a fatia mais rica somente abocanhou cinquenta porcento da riqueza total. O esforço para abocanhar a outra metade, porém, segue firme e incansável. Afinal, as hélices...
De fato, em janeiro desse ano, o Instituto Oxfam, entidade que se dedica a buscar soluções para enfrentar a pobreza mundial, divulgou, durante o Forum Econômico Mundial de Davos, que as oitenta e cinco pessoas mais ricas do mundo possuem riqueza maior do que toda a metade mais pobre da população do planeta (01). É isso mesmo. Oitenta e cinco pessoas possuem mais riqueza do que o somatório do patrimônio de três bilhões e quinhentas mil pessoas somadas.
Em outras palavras, em todo um mundo habitado por três bilhões e meio de pessoas, zero, vírgula, zero, zero, zero, zero, zero, dois porcento da população (0,000002%) detém metade da riqueza.
Além disso, o instituto ainda revelou que um porcento da população do mundo, cerca de setenta milhões de pessoas, controla mais da metade do patrimônio mundial. É como se houvesse um pequeno país em algum lugar do mundo, cercado por um fosso e protegido por altos muros de rocha, cujos habitantes fossem todos bilionários e de lá controlassem as cordinhas das marionetes que se apresentam no restante do mundo. É por isso que são ricos: têm muito trabalho para controlar quase quatro bilhões de marionetes.
Porém, percebam que esse um porcento da fatia populacional detém metade da riqueza se considerada a população total do planeta. Caso considerada apenas a metade mais pobre, esse grupo possui riqueza equivalente a sessenta e cinco vezes o patrimônio dessa metade mais pobre.
Já escrevi um minúsculo texto no blog sobre a concentração de riqueza, aqui: http://marciovalley.blogspot.com.br/2013/10/a-distribuicao-da-riqueza.html.
E o que acontece na vida real quando o meio circulante começa a sumir do mercado? Quando o dinheiro permanece meramente escritural, guardado em investimentos que não guardam qualquer relação com a atividade produtiva?
Bom, grosso modo, o que ocorre são as crises econômicas que assolam o planeta de tempos em tempos, como a que houve em 2008. O capitalismo, porém, não pode parar. Então, os governos retiram dinheiro dos contribuintes, “salvam” os bancos particulares da quebra (pelo bem do povo) e os bancos centrais emitem dinheiro, gerando inflação.
É bom lembrar que, em princípio, a iniciativa privada pressupõe o risco do negócio, em cujo nome os ricos se dão o direito à acumulação. Todavia, na hora do aperto, eles necessitam ser “salvos” pelo dinheiro do povo.
Esse dinheiro novo vai para o mercado, é igualmente sugado pelos bilionários, novamente fica-se com o problema da falta de dinheiro. Nova quebradeira, novo desembolso dos contribuintes, emite-se moeda novamente e essa ciranda não vai terminar nunca.
Ocorre que, para essa fatia de um porcento da população continuar acumulando cada vez mais, ficando cada vez mais rica, e ainda assim ser possível ao capitalismo continuar a caminhar, há um elemento indispensável: a fome, a miséria e a pobreza de mais da metade da população.
São eles, os pobres, com sua mão-de-obra barata, com suas necessidades de serviços públicos não atendidas, com suas doenças não curadas, com sua parca ou nenhuma alimentação, com a mortes de suas crianças, são eles, a um só tempo heróis e vítimas, que garantem o excedente de dinheiro que vai para o bolso dos bilionários.
Se os bilionários fossem um pouco menos bilionários, ainda assim seriam ricos e não existiria pobreza no mundo, mas... quem se importa? Não é só pelas hélices, diriam os hipotéticos equivalentes bilionários dos black blocks, os golden blocks, em suas manifestações... existem os iates para reparar.
E há algo que acrescenta à maldade uma pitada de insanidade: é possível imaginar uma economia que distribua a riqueza, elimine a pobreza e, ainda assim, permita a manutenção e o surgimento de pessoas ricas. Trata-se do sistema de "economia natural" ou de "economia de moeda livre" sugerido pelo comerciante alemão, teórico economista, ativista social e anarquista Silvio Gesell (1862-1930), sobre o qual já escrevi aqui no blog. Leia aqui: http://marciovalley.blogspot.com.br/2013/01/um-sistema-economico-natural.html.
O capitalismo pode ser um sistema econômico que veio para ficar e pode ser que dê certo. Porém, não pode possuir a ampla liberdade que atualmente goza.
Não existe nenhum sentido lógico ou racional a justificar que a preocupação com a própria sobrevivência ou dos familiares atinja centenas de gerações no futuro.
O nosso estágio civilizatório, de alta tecnologia e um conhecimento inimaginável poucas décadas atrás, deveria, segundo penso, ter chegado ao ponto de compreendermos que a ninguém deveria ser permitido ficar bilionário, simplesmente porque ninguém possui esse valor individual.
Não há trabalho especial ou iniciativa privada que torne uma pessoa tão merecedora assim. Nenhum ser humano deveria valer o equivalente a milhões de semelhantes. No limite, esse enriquecimento não deveria ser transmitido totalmente por direito de herança.
A possibilidade de enriquecimento infinito, sem limites, de tão daninho, degenera o próprio sistema que o autoriza e conflita com o processo civilizatório e com a dignidade da pessoa humana.
Seja através da limitação ao direito de herança, seja através da imposição de pesados impostos sobre as grandes fortunas, e para o bem do próprio capitalismo, deve ser posto um fim a esse tempo de irracionalidade no qual o medo do futuro se prolonga para a eternidade e justifica o enriquecimento sem fim.

2 comentários :

  1. De fato está em acordo com o que você defendeu em nossa conversa. Penso que não podemos desprezar que a maior parte de toda a riqueza produzida e vagas de empregos geradas, são oriundas do segundo setor. Setor esse que é motivado pelo lucro. Penso na individualização do ser e entendo que cada um tem seus anseios, desejo e necessidades. Tendo isso considerado, não posso mensurar o direito de determinada pessoa comprar um iate ou porque não trocar as hélices de seu helicóptero? Se retirarmos o o desejo do lucro por parte dos empregadores, só lhes restarão os ônus e os riscos do negócio. com isso, que razão teria o indivíduo para investir em um novo empreendimento e gerar mais empregos? Não cabe ao Estado ceifar tal direito, porém deveriam haver políticas fiscais justas e com taxações proporcionais à riqueza do indivíduo ou de determinado grupo. Não acho que a sociedade esteja preparada filosófica, ética e moralmente para um modelo como o proposto por Marx. Porém, acho bonito a paixão e a harmonia nesse discurso defendido por muitos. Acho que ele seria facilmente aceito em sociedades como as aldeias indígenas (antigas) e no paraíso prometido por Jesus. (coisa essa que é subjetivamente utópica) E sobre a política econômica da moeda livre, há muito oque ser aproveitado neste pensamento. Quando se refere a criação de uma moeda lastreada num bem básico de valor constante e com uma diminuição progressiva do valor de face de uma moeda estagnada. Mas não concordo que devesse haver a descaracterização de fronteiras e redução da participação reguladora do Estado. Acho que o caminho ideal seja uma economia mista, incentivando a produção e valorizando o empreendedor, com o Estado taxando proporcionalmente todas as riquezas e concedendo incentivos fiscais aos empresários que colocarem seus investimentos para a produção de bens reais e geração de empregos. Quanto ao que conversamos sobre a estatização dos setores de interesses estratégicos, penso que o Estado deveria ter participação efetiva na tomada de decisões de empresas que detenham licitações e prestem serviços nesses segmentos. (energia, minério, transporte, comunicação) e limitar o lucro destes serviços, sem subsídios e sim com a mera ideia de um limitador de lucro, para não vermos empresas com um lucro de 300% (custo repassado ao consumidor) Esta eu acho que seriam as mudanças necessárias no atual sistema. O sistema capitalista carece atualmente de políticas reguladoras mais efetivas, mas sabe quando eu acho que isso ocorrerá? Nunca! Pois acredito que o dinheiro é corrompedor e que é muito mais fácil você corromper alguém que difundir algum novo ideal. "O homem é o lobo do próprio homem." já dizia Thomas Robbes... E sem citarmos que uma eventual futura compreensão por parte expressiva da sociedade, passaria primeiro por uma reforma educacional, moral e cultural (esta última, mais por parte do trabalhador). Então se formos realistas, o capitalismo é o sistema mais "humano" possível.

    por Anderson Casado.

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    1. Obrigado, Anderson, pelo comentário lúcido e inteligente. Já escrevi uma resposta um pouco maior no Face. Abração. Marcio Valley.

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