segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Corruptos, os corsários da contemporaneidade




Atualmente o tema que mais tem suscitado acaloradas discussões e divergências na política brasileira vem traduzido na palavra corrupção. Um dos polos desse debate utiliza o discurso moralista da corrupção para desacreditar o outro lado, que, por sua vez, devolve a acusação sob a assertiva de que, no Brasil, nenhum partido detém o monopólio da corrupção ou da honradez. O questionamento que se impõe, porém, é se está bem transparente, para ambas as partes, o tema a partir do qual se digladiam. Afinal, o que é exatamente a corrupção?
Semanticamente e sob um prisma axiológico, a palavra corrupção busca simbolizar a perda de valor, de utilidade ou de sentido de alguma coisa pela ação deletéria de outra. Corrupção é, assim, a degradação, o apodrecimento, a putrefação de alguma coisa por efeito do mal, da vilania. Nessa acepção, pode-se entender como mal a oxidação que torna apodrecida uma fruta até então madura. A oxidação corruptora transforma aquilo que era alimento numa fruta corrompida.

Contudo, não é esse o tipo de corrupção que envolve o acalorado debate político brasileiro atualmente. Trata-se da corrupção entendida como o desvio ético praticado por algumas pessoas para, em detrimento do interesse público, satisfazer algum interesse privado. Nesse ponto é preciso deixar claro que a corrupção sempre envolve, no mínimo, dois protagonistas: o corrupto e o corruptor. O primeiro é a pessoa que detém parcela do poder público e que irá receber alguma vantagem, para si ou para outrem, em troca de favorecer algum interesse de um terceiro, que é o corruptor.
Costuma-se denominar de corrupta a pessoa que, sendo guardiã da coisa pública, aceita a corrupção. Porém, o que de fato foi corrompido foi o cargo público que ocupa, degradado e deturpado pela ação ilícita do corruptor. Por esse motivo, o mal da corrupção atinge, de verdade, não o corrupto, mas a res publica, que assim torna-se corrompida, apodrecida. Disso se pode concluir que, independentemente da tipologia penal de corrupção ativa e passiva, sob um prisma meramente sociológico corrupto e corruptor praticam a corrupção em sua forma ativa, pois ambos põem em andamento uma ação que visa deturpar, deformar, o sentido da coisa pública com o objetivo doloso, desejado, de alcançar um acréscimo patrimonial. Sendo assim, num sentido mais lato, sob o enfoque do efeito sobre o bem público, ambos são corruptores do bem público que sofre o seu ataque, bem esse que é o corrupto, no sentido de corrompido.
E, se aprofundarmos o efeito maléfico da ação privada sobre o interesse público, torna-se evidente que toda ação que é praticada em prejuízo do patrimônio da coletividade é uma forma de corrupção, ainda que praticada sob a égide da lei. O nepotismo cruzado é uma forma de corrupção, assim como o fisiologismo e o clientelismo, todas práticas absolutamente comuns, no cenário político brasileiro, de apropriação da coisa pública. Essas formas, agregadas pela corrupção mais comumente conhecida e combatida, de pagar um servidor público para obter vantagem indevida, são práticas rotineiras sabidas e repudiadas veementemente, ao menos na oralidade.
Há, contudo, um outro tipo de corrupção, talvez mais daninha do que as tradicionais, que passam ao largo de um enfrentamento mais sério no debate público.
Sobre essas, o professor Ladislau Dowbor, economista e professor titular no departamento de pós-graduação da PUC-SP, em seu pequeno livro “Os estranhos caminhos do nosso dinheiro” (1), enfatiza que a ação dos diversos interesses privados que atuam direta e indiretamente na política, principalmente pela via do financiamento das campanhas eleitorais, criando bancadas próprias de parlamentares para o fim de proteger seus interesses, constitui uma forma institucionalizada de corrupção. Assim, por exemplo, projetos de lei contrários aos objetivos comerciais das empreiteiras são impedidos de avançar pela bancada das empreiteiras, que, por outro lado, toma a iniciativa de criar leis que beneficiem esse setor ainda que com prejuízo para a sociedade, como, p.ex., reduzindo a taxação do faturamento das empresas do setor. O mesmo ocorre em relação as tantas outras bancadas parlamentares corporativas, como a dos ruralistas, dos evangélicos, dos banqueiros, das montadores e outras. Nas palavras de Dowbor, “instala-se o clima de 'negócios' ”, com “apropriação privada do dinheiro público” e “deformação das prioridades nos investimentos”, chegando-se a “somas extremamente elevadas, que resultam na corrupção da própria legalidade”.
Essa é a corrupção privada que se imiscui, travestida de legalidade, na coisa pública de forma avassaladora.
Existe, porém, a corrupção que opera exclusivamente no âmbito interno da gestão da coisa pública, também sob a aparência da legalidade, que é a manipulação da legislação em favor de alguns grupos de pessoas com função pública. Ocorre quando as ações benéficas e necessárias à população deixam de ser praticadas por aquele que deveria fazê-lo, por conta de interesse pessoais. Como se sabe, um dos apanágios do exercício da função pública é a impessoalidade que deve pautar as ações de quem detém a função pública. Segundo esse princípio, a ação do servidor público (lato sensu) somente deve visar o interesse público, ainda que de alguma forma o “bem da vida” pretendido pela coletividade traga pessoalmente algum prejuízo. Assim, mesmo que a lei autorize e legitime uma ação diferente, há um imperativo ético-moral do servidor público a ser observado que veda sua atuação de forma contrária. Por exemplo, evidenciando-se uma necessidade orçamentária, o administrador público não pode deixar de determinar uma elevação tributária somente pelo fato de que o aumento de imposto atingirá seus lucros ou rendas. Num outro exemplo, age contra o interesse público o político eleito que aumenta o próprio mandato, ainda que através de lei, porque o povo, que detém o poder de fato, somente outorgou mandato, pelo voto, para um período certo. Admitir que a representação pelo voto estenda a legitimidade de sua representação política até o ponto do elastecimento do próprio mandato, por um dia que seja, é, logicamente, similar a admitir o elastecimento para a vitaliciedade.
Num exemplo atual, é de se indagar se a tentativa de obstrução à regulamentação da participação popular na determinação das prioridades públicas, através dos Conselhos Populares, não constitui um ato de corrupção legal, através do qual o representante violenta o direito do representado.
Esse arranjo político de legitimar o estupro da coisa pública por meio da legalização da iniquidade e do desvio do patrimônio público é destacado por Dowbor (2) através de uma citação ao Tax Justice Network que adverte para o fato de ser essa uma prática absolutamente comum, que é possibilitada e facilitada pela circunstância de que corrompidos e corruptores buscam posições de poder para fazê-lo. Nossos corruptos e corruptores oficiais e normativamente legitimados, portanto, são a versão contemporânea dos corsários contratados pela rainha. A diferença é que agora assaltam os porões dos navios do próprio reino que os contrata.
É certo que o povo, de um modo muito firme, é contrário a todo tipo de corrupção e costuma identificar esse ou aquele político como corrupto, tecendo críticas ferozes contra o tal meliante. Isso é salutar. Todavia, os políticos identificados como corruptos não são seres de origem extraterrestre. Eles nascem aqui mesmo, nesse pequeno planeta chamado Terra, em seus respectivos países, sob cuja cultura é forjado o tipo de corrupção e o modo com que será realizada.
Nenhum país e nenhuma classe política do mundo está imune à corrupção.
Quanto aos nossos corruptos, nascidos no Brasil, são forjados da mesma têmpera que forja o povo que representam. Os valores que conduzem à corrupção do político são os que são admitidos na sociedade com frouxidão moral.
Por exemplo, o pai que quer dar uma caixinha ao policial para o jovem filho não ser autuado por falta de habilitação ou por dirigir embriagado e produz o sermão de que “a polícia devia estar subindo morro atrás de bandido e não de pessoas do bem”, traz em si a arrogância e o caráter preconceituoso e discriminatório que embute a semente da corrupção política.
Quando a pressa faz o motorista andar pela contramão, furando a fila do trânsito na estrada de ida ou de volta da viagem, esse impulso de sobreposição da vontade individual sobre a dos demais motoristas é representativo da mesma inclinação sentida pelo político que não vê mal algum em se favorecer primeiro para depois pensar na coletividade.
A pessoa que recebe um troco a mais e não devolve ao caixa do comércio age exatamente da mesma maneira que o político que se apropria de algo que não é seu.
Enfim, a corrupção não é um apanágio do político, mas da cultura humana do egocentrismo. A corrupção nasce no seio da sociedade e é transplantada para o ambiente político e para qualquer outro ambiente em que alguém possua uma posição de poder sobre as demais, inclusive nas igrejas, templos erigidos em honra da virtude.
Isso não significa que devemos relaxar e aceitar a corrupção passivamente, de forma nenhuma. Assim como a habitualidade do homicídio não implica concordância a autorizar sua descriminalização, a corrupção deve continuar a ser combatida até que atinja um ponto mínimo em que seja suportável e cause o menor prejuízo possível.
Nunca deixará de existir, mas pode ser bastante mitigada. Deve-se pontuar, todavia, que a fulanização da corrupção não é saudável para o seu combate.
Tratando-se de mazela que se encontra disseminada no próprio tecido social que dá origem à política, a corrupção integra a estrutura do próprio poder e é independente da coloração do governo que se encontrar eventualmente no poder.
Quando se afirma que toda a corrupção do Brasil é responsabilidade de um único partido, joga-se uma cortina de fumaça sobre o assunto e é deixado de lado a adoção de medidas efetivamente eficientes para o controle dessa mazela. Eleito um novo governo sob o pálio do combate à corrupção, ele estará comprometido com essa bandeira. Ao se defrontar com uma corrupção resiliente, pois esta resiliência é de sua natureza, não será capaz de produzir o resultado ansiado pelos eleitores, abrindo as portas para a possibilidade de maquiagem que garanta a aparência de vitória e a possibilidade de novo sucesso eleitoral. Isso será feito a partir da cessação das investigações, da fiscalização e do “engavetamento” dos poucos casos que surgirem, já que a corrupção não cessará por rezas e milagres.
Por outro lado, um governo que resolva enfrentar esse grande problema e que não invista pesadamente em divulgação institucional desse combate, a fim de transformar o cidadão em um companheiro nessa frente de batalha, sofrerá a marca provocada pelas repercussões. O combate à corrupção evidencia a corrupção, coloca-a nas manchetes e traz a falsa aparência de que o número de casos aumentou exponencialmente.
Um outro aspecto a ser observado é que a corrupção também deriva do sistema político atual, cuja fragilidade obriga todo governante, de prefeito a presidente da república, a compor uma base parlamentar que envolva uma multiplicidade de partidos, como meio de alcançar a chamada “governabilidade”. Eleito o governante, é obrigado a distribuir cargos a roldão para pacificar sua base de apoio. Nessa barafunda de nomeações fisiológicas, é inescapável a assunção de corruptos ao poder. Nesse caso, a nomeação de um corrupto não necessariamente guarda relação com a honradez de quem o nomeou. É possível que um subordinado seja corrupto em conluio com seu chefe. Porém, é muito comum que o subordinado seja corrupto apesar de seu chefe. Nesse último caso, se o superior hierárquico, tomando ciência do ilícito, vem a adotar as medidas disciplinares que a lei permite, seu papel de combate à corrupção estará sendo devidamente exercido.
O governo Itamar Franco, com seu Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, enfrentou e venceu a principal mazela do país: a inflação até então incontrolável. O governo Lula enfrentou e venceu o segundo maior problema do Brasil: a miséria absoluta e a pobreza extrema. Ao governo Dilma parece ter sido destinado o combate ao terceiro maior problema do Brasil: a corrupção em todos os seus aspectos, lícitos e ilícitos.
Esse enfrentamento passa inexoravelmente por uma profunda reforma política que imperiosamente deverá eliminar por completo a possibilidade de financiamento empresarial de campanhas políticas e eliminar ou reduzir ao máximo o financiamento individual. Esse financiamento de campanhas pelas empresas ou particulares, se em valor alto, é o nascedouro e o fomentador de quase a totalidade da corrupção brasileira, tanto a tipificada como ilegal, como a que é aceita pela norma.
No Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, a promiscuidade aguda entre as corporações e a política é a expressão atual da banalidade do mal.
A fulanização, dando origem às patéticas marchas pelo impeachment de uma presidente recém-eleita, parece fazer o jogo jogado daqueles que se aproveitam da ingenuidade coletiva. Autêntico diversionismo, inclusive com a participação de ex-cantores desempregados para animar o movimento, serve para distrair e ajuda a manter as coisas exatamente como estão.
(1) Dowbor, Ladislau - São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013 (Coleção O que saber).

(2) idem.

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