terça-feira, 15 de setembro de 2015

Consumismo, exacerbação do individualismo e estado social



Alguns pensadores afirmam que a evolução do ser humano, em sua dimensões individual e coletiva, ocorreria segundo as etapas da prevalência do direito de propriedade, passando à primazia do direito político e finalmente desaguando no estágio final da formação do estado democrático em sua expressão mais pura, a do estado social.
O ser humano, por natureza e por pressão evolutiva, é socialista, dado que coloca, ainda que de forma inconsciente ou semi-consciente, a condição pessoal do próximo como elemento comparativo de avaliação da própria realização pessoal e felicidade individual. Isso vale para todos, pobres e ricos. Ricos somente deixam de atuar como socialistas em relação a quem considera inferior, movidos pelo princípio de egoísmo que os induz a proteger a própria riqueza, Nunca, porém, deixam de perseguir a igualdade com os superiores, os mais ricos do que eles. Seriam uma espécie de socialistas na riqueza. O móvel, porém, é idêntico.

Não é por outro motivo que comunidades indígenas, vivendo praticamente em estado de natureza, situam-se entre as mais felizes do planeta. São, em essência, socialistas, praticando uma experiência de harmonia comunitária e tendo a solidariedade como requisito da própria sobrevivência individual. Não existem leis impositivas ou aparato jurídico-policial que obriguem ao trabalho como forma de sobrevivência, mas cada um dos componentes desse tipo de sociedade que ingenuamente denominamos de primitiva possui em si a exata noção da importância de sua participação no destino da comunidade. Nela não prevalece a cantilena elitista, preconceituosa e desumana de que "pobre é tudo vagabundo, não gosta de trabalhar e gasta tudo em cachaça".
Essa mesma sensação de felicidade comum é, espantosamente, verificada em países que se notabilizam pela pobreza, como Cuba, Haiti ou a Índia, apesar de todas as incertezas que cercam o dia de amanhã dessas populações.
O atavismo que inclina o ser humano ao desejo da igualdade, da mesma forma ocorre nas sociedades ditas evoluídas, cujo modelo igualitário é a visão do padrão de vida do vizinho, a sua casa, o seu carro e o seu consumo. O ser humano médio não admite ser inferior ao vizinho no que toca ao poder aquisitivo. Aliás, o espelho do que se pretende ser qualidade de vida deixou, em tempos muito recentes, de ser o vizinho. O paradigma, agora, são as celebridades, os famosos. Deseja-se vestir o que elas vestem, possuir os bens que elas possuem, ter a fama que elas têm e até ter corpos ("shapes") como os delas.
O "vizinho", hoje, de onde brota o sentimento de inferioridade e desigualdade, e, por conseguinte, de infelicidade, é também o "amigo" da rede social, que muitas vezes nem se conhece pessoalmente, com suas fotos de viagens, de suas aquisições materiais e até dos restaurantes onde faz suas refeições, estas que, espanto, também são fotografadas e exibidas na rede como símbolos de status. Este é o ponto a que chegou o ser humano classificado como civilizado e avançado, ao ridículo de considerar que a própria importância individual se avalia pelo alimento que come, sequer em função de suas propriedades nutritivas, mas pelo preço que se permite pagar. A lógica é: posso pagar um vinho de dois mil dólares, logo, sou melhor e mais bem-sucedido do que você, que não pode.
É a sociedade do hedonismo e da futilidade sendo conduzida aos seus limites extremos.
Não são poucos os estudos acadêmicos que demonstram que o nível de felicidade do ser humano pouco tem a ver com a sua renda e o seu poder aquisitivo. Muitos advogam que a renda é importante até o ponto de escape da miséria e da pobreza, passando, a partir daí, a ter papel secundário ou mesmo irrelevante na conquista de felicidade, inclusive chegando, em certos casos, a exercer o papel contrário de suscitar infelicidade a partir de determinado ponto de enriquecimento, uma vez que a riqueza traz consigo a preocupação com a administração do patrimônio e temor por sua perda. Afinal, "there's no free meal".
Na verdade, tais estudos sugerem, com outras palavras, que um mundo cuja totalidade de seres humanos fosse constituída de miseráveis seria provavelmente mais feliz do que o atual. Isso se explica, primeiro, porque os conceitos, em geral, são obtidos por comparação. Sob tal perspectiva, aquilo que conceituamos como miséria é assim descrito em função comparativa direta com a opulência. Miséria, para o ser humano, é a incerteza de um lugar para se abrigar e de um alimento para comer. No mundo natural, isso se chama simplesmente "vida", pois, sob as leis da natureza, vida e sobrevivência são fundamentalmente a mesma coisa. Como se compreende a miséria, um indígena, vivendo em ocas de palha, com incerteza alimentar, sem acesso à energia elétrica, fontes de água limpa e saneamento básico, necessariamente teria que ser categorizado como miserável, embora de forma nenhuma o seja.
Em segundo lugar, um mundo pleno de miseráveis seria mais justo e menos desigual do que um mundo no qual a miséria de muitos convive com a opulência frívola de poucos, o que ocorre justamente em decorrência do instinto humano de perseguir a igualdade, fazendo-o repugnar a desigualdade. Não é essencialmente a fome que induz à infelicidade, mas a sensação de injustiça pelo testemunho diuturno da saciedade desleixada e descomprometida do outro. Num mundo onde todos fossem miseráveis, viver em barracos apertados e ter acesso incerto ao alimento constituiria a realidade comum, não sendo fator de infelicidade, mas um elemento inerente à vida de todos. Nesse cenário, sem a pressão da comparação negativa, coisas hoje tidas por triviais e irrelevantes, como um dia de ócio sob o sol, um banho no rio ou a obtenção de alimentos, com interação entre os indivíduos da mesma comunidade, constituiriam acontecimentos catalisadores da felicidade.
É importante explicar que "opulência frívola" é aquela experimentada pelos ricos, e também por grande parte dos membros da classe média, que, como satélites, se orientam bovinamente pela conduta dos superiores, pois se imaginam iguais, e que se caracteriza pelo exacerbamento da autonomia individual ao ponto da cegueira social.
Dito de modo mais claro: quando o indivíduo passa a ter a sensação de que suas conquistas são fruto exclusivo de seu próprio esforço pessoal, de seu próprio mérito e inteligência, sem colaboração alguma da ação coletiva passada e presente da sociedade onde vive, nasce o sentimento de que, primeiro, se ele conseguiu, todos podem conseguir, não sendo necessária a interferência do Estado, com os gastos sociais daí decorrentes e consequente necessidade de tributação. Segundo, de que não deve nada a ninguém ou à comunidade, o que justifica uma vivência dedicada exclusivamente à satisfação dos próprios e autodirecionados desejos, com total alienação das condições sociais de seu local e de sua época.
Democracia não é apenas um direito de escolha, de sufrágio universal. Fosse assim alguns governos autoritários que obtêm a quase totalidade dos votos em eleições suspeitas necessariamente deveriam ser enquadradas como as mais democráticas do mundo.
Democracia é muito mais um modelo de gerenciamento da coletividade que se direciona no sentido de mediar os conflitos existentes entre os interesses individuais e os da comunidade. A dimensão ontológica da democracia pressupõe a segurança individual como inerência e fundamento. No que se relaciona às perspectivas em relação ao futuro, o medo induz o egoísmo, enquanto a despreocupação faz surgir o altruísmo e a solidariedade.
É assim que surge a Ágora ateniense e se inicia a caminhada ainda em curso em direção à primazia dos direitos políticos. Com o propósito de mitigar arestas e proporcionar segurança. A inteligência de que os problemas da comunidade inevitavelmente, se não solucionados a contento, atingem o patrimônio jurídico-material do indivíduo é que fez o ser humano sair de uma realidade de prevalência do princípio do egoísmo (estado de natureza), para uma na qual os alicerces sociais se encontram escorados no princípio da solidariedade (civilização).
Todavia, a mudança de rumos do capitalismo, que se libertou da exploração da mão-de-obra humana e passou a explorar o ser humano em sua condição de mero consumidor, de igual forma fez mudar o tipo de mentalidade que move o indivíduo e se põe como barreira à assunção do almejado estado social.
Se antes o capitalista mais inteligente aprovava e apoiava o estado de bem-estar social, por nele perceber um meio eficaz de garantir a saúde da mão-de-obra sobressalente, esse "backup" humano redundante que poderia ser necessário em alguma emergência, hoje não mais o apoia, porque o gigantismo da mão-de-obra disponível, na verdade, está se tornando anacrônico. A tecnologia libertou o capitalismo dessa amarra, dessa necessidade do elemento humano.
Inundado pela propaganda consumista, e por ela orientando a própria vida, o ser humano está se tornando mais e mais insensível à dor distante do miserável, cada vez mais próximo de si, e passando a crer que isso não é um problema seu, mas dele, do pobre. E se não é um problema seu, não é do Estado, que dirige a sociedade da qual faz parte.
Ingênua e egoisticamente, o ser humano não miserável, legatário em negação das oportunidades criadas pelo passado coletivo, afasta de si a ideia de uma sociedade protetora, pois dela não necessita no momento e, superdimensionando as próprias potencialidades, pensa que jamais dela irá necessitar. Passa a entender que a vida na sociedade é uma ilusão e que, de fato, são apenas pessoas reunidas aleatoriamente em um dado lugar, sem maiores responsabilidades umas em relação às outras. Volta-se, assim, ao princípio do egoísmo do estado de natureza.
Em outras palavras, a sociedade humana está involuindo em direção ao estado selvagem ditado pelo cada um por si, sendo isso produto direto e inexorável do consumismo e do surgimento de uma globalização do capital sem a correspondente globalização do ser humano. O capital não possui barreiras, mas o ser humano sim, como se vê na tragédia dos refugiados.
Ocorre que o estado de natureza possui uma outra face: a sobrevivência a qualquer preço. Por conta disso, em substituição ao estado de bem-estar social, e para garantir a propriedade, opta-se pelo endurecimento da lei e da ordem, através do incremento do aparato jurídico-policial. É pelo endurecimento das leis protetivas do patrimônio, da repressão e da violência que se intenta conter as demandas sociais.
A pobreza passa a ser encarado sob um enfoque criminal e não, como deveria, a partir de uma perspectiva social.
Como já dito, não existe almoço grátis, tudo tem um custo. E o custo dessa repressão violenta às demandas sociais é altíssimo, talvez maior do que custaria ao orçamento público as despesas com paliativos como as transferências diretas de renda.
E não somente há o custo da contenção, mas também o custo da redução da felicidade coletiva e do aumento da sensação de insegurança. Grandes cidades possuem locais inacessíveis à população e ao Estado. Constituem territórios semi-independentes, guetos a partir dos quais são lançados movimentos não politicamente conscientes de resistência ao stablishment.
Porém, à cegueira do egoísmo, junta-se a ignorância e o oportunismo político, e opções que em si não podem ser consideradas democráticas e melhores para a sociedade, acabam por falar mais alto.
O Brasil atual está vivenciando em sua plenitude esse tipo de atitude egoísta.
O oportunismo político agiganta todo e qualquer deslize, ou mesmo os cria, apequenando ou tornando invisíveis ações políticas com efetiva capacidade de mitigar, ainda que pouco, a sensação de desigualdade, principalmente no âmbito do empoderamento da renda e da facilitação de acesso à educação e à saúde.
Iniciativas como a da cidade de São Paulo, de suavização e humanização do ambiente urbano, são criticadas em nome de princípio de egoísmo.
Um dia a conta desse desvario será cobrada e o preço coletivo a pagar será salgado.

Afinal, não há almoço grátis.

3 comentários :

  1. texto maravilhoso.. vc enxerga uma saída para a tendência apresentada no texto? Ou vamos ser extintos?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, José Ruiz, obrigado por visitar o blog. Sim, enxergo saídas para a sociedade. Sou otimista. Não creio, porém, que venha alguma solução em breve. Penso que teremos que sofrer muito antes de sermos finalmente felizes. A disseminação do conhecimento aos poucos trará discernimento às pessoas, que se movimentarão politicamente para tornar a convivência social um pouco menos inóspita do que é atualmente. Provavelmente não viverei o suficiente para testemunhar isso, mas gosto de pensar que meus netos viverão num mundo melhor. Grande abraço.

      Excluir
    2. eu gostaria de viver o suficiente para testemunhar mudanças reais.. rs.. tô tentando divulgar essa ideia, o que vc acha: https://setimarepublica.wordpress.com/2016/11/04/a-revolucao-que-todos-queremos/

      Excluir