Como
realizar uma análise crítica, isenta, sobre as ocorrências
sociais, eventos antecedentes e possíveis consequências?
Possivelmente, o melhor instrumento para essa análise é a interpretação
sistemática, focando o comportamento da totalidade para entender as
ações individuais.
Dentre
os diversos mecanismos disponibilizados pela hermenêutica jurídica
para a análise da aplicação do ordenamento legal a interpretação
sistemática se destaca, pois tal método leva em conta a inserção
do dispositivo legal a ser aplicado na totalidade do conjunto
normativo de um dado território.
Em
outras palavras: a interpretação sistêmica afirma que não se deve
aplicar uma lei de forma pontual, a partir de sua leitura isolada do
restante do arcabouço jurídico no qual se insere, pois esse
precedente normativo é seu fundamento de criação e validade,
portanto deve ser considerado. Caso contrário, a aplicação isolada
de um artigo de lei, sem considerar a legislação como um todo, é
capaz de conduzir a uma situação inversa, e injusta, relativamente
à hipótese de cabimento pretendida pelo legislador.
Essa
modalidade de interpretação de caso, que leva em conta o sistema
como um todo na análise do caso em foco, parece ser adequada para
toda e qualquer análise da realidade social. Em outras palavras: o
estudo de um ponto da realidade social deve considerar a totalidade
do real, pois a relação existente entre indivíduo e universo
social é interdependente, sendo ambos ao mesmo tempo causa e efeito
um do outro.
Há
um problema em qualquer análise da realidade social: ela é
comparável a um sistema meteorológico, cuja infinidade de variáveis
a serem consideradas torna praticamente impossível prever o tempo
(não o clima) senão com poucas horas de antecedência e com margem
de acerto reduzida.
A
teoria do caos explica bem o motivo dessa indeterminação. Qualquer
conjunto que contenha mais de três elementos dinâmicos iniciais, ou
seja, com variação nos números a serem considerados nos cálculos
para a evolução dos acontecimentos, torna imprevisível o resultado
que os comportamentos dos elementos produzirão nesse universo.
A
realidade social, produzida a partir da iniciativa conjunta de sete
bilhões de pessoas se comportando de forma aleatória e, em muitos
casos, ocultas - comportamentos esses que, mais que a razão, são a
própria dinâmica da sociedade -, possui destino certamente
imprevisível.
É
por esse motivo que as chamadas "ciências humanas"
constituem indiscutivelmente um ramo respeitável e valioso do
conhecimento humano, mas dificilmente caberiam na definição de
"ciência". Os fatos sociais, salvo raras exceções, não
podem ser reproduzidos em laboratório e as conclusões dificilmente
poderiam ser repetidas por outros cientistas para confirmação ou
rejeição. A elas resta, como mecanismo de produção de
conhecimento, estender para o universo os resultados obtidos em
pequenas amostras, o que sempre gera conclusões duvidosas.
Claro
que é possível sugerir tendências, inclinações possíveis, mas
prever com exatidão o que irá ocorrer é impossível.
As
opiniões econômicas, por exemplo, no mais das vezes constituem
apenas reencenações dos oráculos gregos, cujas charadas poderiam
mais ou menos se encaixar em quase todas as ocorrências do futuro,
ou simplesmente um meio para manipular as tendências do mercado
através de profecias autorrealizáveis. Apesar disso, gozam de
imenso prestígio, inversamente proporcional, parece, à sua efetiva
utilidade social. Na verdade, as opiniões de economia mais
massificadas através da imprensa aparentemente mais prejudicam do
que auxiliam o desenvolvimento da sociedade humana.
As
pesquisas de opinião, como outro exemplo, são direcionadas através
da própria formulação dos questionamentos.
Não
bastasse a imprevisibilidade do destino social, como causa, a gerar a
incerteza dos efeitos daí decorrente, o acervo informativo que
alcança a população compõe aquela massa utilizada pela classe
dominante no que Gramsci denominou de "disputa hegemônica",
ou seja, a guerra pelo controle do pensamento e da ação do
coletivo. Essa guerra, por óbvio, possui como armas pesadas toda a
produção cultural de massa, principalmente a imprensa, mas também
televisão, cinema, teatro, livros e qualquer outra manifestação de
pensamento manipulável que seja capaz de alcançar o povo.
Assim,
parece adequado utilizar a ferramente da interpretação sistêmica
subjetiva, conferindo aos dados objetivos recolhidos do objeto em
estudo a interpretação subjetiva do examinador, a qual certamente
será permeada por sua historicidade pessoal. A análise da miséria
por quem nunca passou fome será induvidosamente distinta daquela
produzida por quem já experimentou essa dor.
Por
essa razão - imprevisibilidade do futuro e hegemonia discursiva
conduzindo à necessidade de uma interpretação subjetiva -,
afigura-se um tanto tola, e mesmo arrogante, a manifestação de
opiniões, geralmente irônicas, sobre as chamadas "teorias da
conspiração", como as que envolvem casos rumorosos como o
assassinato de Kennedy ou a derrubada das torres gêmeas, nos EUA, os
atentados terroristas na Europa ou as mortes de Jango e Juscelino,
bem como a atuação geopolítica americana nos golpes de 1964 e
2016, no Brasil. Bem mais recentemente, o sarcasmo se estendeu às
opiniões divergentes sobre o pano de fundo do golpe na Turquia.
Não
raramente, o sarcasmo e a ironia partem de integrantes da academia
que, de suas torres de marfim, desdenham dos pensamentos que fogem ao
padrão, estilo e jargão exigidos para que um texto seja considerado
ou levado a sério.
O
que a ironia oculta, e onde reside a arrogância, é o desejo de
afirmação e prevalência da opinião de quem ironiza. No fundo,
entende o irônico que sua própria opinião é mais racional ou mais
lógica, embora em geral seja fundada, não em dados absolutamente
indiscutíveis quanto à idoneidade, mas naqueles cuja divulgação
foi previamente permitida pelo aparato hegemônico e que são obtidos
indiretamente, geralmente através da imprensa. E eis aí a rematada
tolice: confiar nesses dados.
Imprevisível
a realidade e sem dados idôneos, a opinião do acadêmico é apenas
mais uma opinião, ainda que estilisticamente possa ser considerada
mais aceitável. Num mundo da incerteza, toda e qualquer opinião
emitida por qualquer pessoa, desde que fundada em elementos lógicos
racionalmente expostos, é factualmente possível.
A
ironia e o sarcasmo, nesse caso, degeneram em preconceito intelectual
puro e simples.
No
que concerne ao discurso hegemônico, obviamente que, num sistema de
dominação travestido de livre e democrático, ou seja, que não
pode impedir a livre divulgação de ideias e pensamentos, ele pode
ser combatido através do discurso antagônico de libertação do
oprimido. Esse texto é um exemplo. Contudo, a diferença está na
disseminação, na divulgação. A ideologia opressora encontra alta
ressonância nos meios de comunicação, enquanto a do oprimido fica
restrito a círculos muito pequenos, ecoando muitas vezes no vazio.
Esse texto continua sendo exemplo.
Por
que é assim? Novamente o socorro vem de Gramsci, cuja resposta
encontra amparo na constatação de que a maior parte, senão todas
as posições de influência de uma dada sociedade acabam sendo
ocupadas, ou por membros da classe dominante ou por seus lacaios,
membros da classe média cooptados para ressoar o discurso de
dominância.
Atuam
nessa função diversos setores da sociedade, sendo de relevância o
papel de jornalistas e juízes. Jornalistas cooptados divulgam e
tornam atraentes as ideias da elite, ideias essas que são
naturalmente absorvidas pela classe explorada, que nelas crê e passa
a vê-las como naturais, absorvendo-as em sua própria identidade. O
papel dos juízes cooptados é o de punir com rigor os integrantes da
classe dominada que rejeitam o ideário de supremacia disseminado
pela mídia e não aceitam o lugar que lhes foi reservado na
sociedade.
Marcuse
igualmente focou a atuação da cultura de massa como elemento
propagador da ideologia dominante, em geral travestida de arte. A
arte de qualidade, subversiva e libertadora, continua a existir, seu
papel é que foi reduzido pelos controladores da indústria cultural.
Pode-se
legitimamente inserir os setores da sociedade que atuam como
disseminadores do discurso de dominância no quadro geral da
burocracia administrativa que organiza racionalmente a sociedade para
consecução dos fins pretendidos pela classe dominante. Isso porque,
ao lado de jornalistas e juízes, já mencionados, diversos outros
atores - escolas, igrejas, partidos políticos, etc - trabalham em
prol da manutenção e otimização do sistema de dominância fundado
no ideal positivista de ordem e progresso. Nesse lema, o ideal de
ordem deve ser entendido como aceitação incondicional das regras
impostas, sob pena de criminalização, prisão e até morte. O de
progresso embute a ideia de possibilidade legal de acréscimo
ilimitado na riqueza dos ricos, ainda que através da multiplicação
da miséria humana e da contaminação do meio ambiente.
Essas
amarras ideológicas da burocracia, que entendem como boa a atitude
de quem se submete ao stablishment e ruim a de quem não se resigna,
descritas por Weber como a "jaula de ferro" da
racionalidade, se revelaram substitutos ótimos para a religião em
sua condição de instrumento orientador da ação do ser humano na
direção desejada pelos que dominam a riqueza e os meios de
produção.
Nesse
sentido, pode-se dizer que grandes empresas de mídia, seus
jornalistas e parte da magistratura personificam as grades dessa
jaula de ferro, sendo vocacionados para a contenção da insatisfação
popular, o que buscam obter através da conformação espontânea da
população ou através da violência do aparato jurídico-policial
do Estado.
A
conformação da população, como já assinalado, se obtém pela
propagação do discurso da dominação, que incute no povo a ideia
de que a submissão é uma virtude e de que "as coisas são
assim mesmo". Para os resistentes a essa ideia primária,
utiliza-se um mecanismo secundário: a criação de um "pânico
moral", como pontificado por Stanley Cohen, ou seja, a invenção
de um inimigo público comum que provoque a coesão social a partir
do medo engendrado por um tema de interesse comum, através do qual
também se consiga a resignação daqueles que não se comoveram com
o discurso da normalidade do poder exploratório.
Segundo
Cohen, em certos casos a mídia e também outras instituições, como
a igreja, como forma de incutir medo na população, aproveitam-se de
um dado fato social (um episódio, uma pessoa, um grupo) para
defini-lo como uma ameaça a toda a sociedade, a partir daí
estereotipando possíveis fatos idênticos que venham a ocorrer.
Criada a ilusão, segue-se uma pauta de discussões sobre o assunto e
apresentação de soluções, como se a ameaça fosse real.
É
o perfeito simulacro da realidade como entendido por Baudrillard, a
construção de uma versão do real que jamais existiu ou com
dimensão não correspondente ao real. O simulacro de Baudrillard
acaba por materializar o "deserto do real" mencionado na
ficção pelo personagem Morfeu, no filme Matrix. Não há real, tudo
é ficção criada, em benefício da máquina exploradora, para
permitir a tranquila extração de energia dos seres humanos em coma,
anestesiados ou hipnotizados pelo discurso.
Num
momento em que o capitalismo se encontra numa encruzilhada de valor e
validade, o pânico moral e o inimigo comum autorizam a criação de
um sistema autoritário, com profunda mitigação dos direitos
individuais, como as leis antiterrorismo americana e a que está
sendo discutida no Brasil. Também são exemplos a adoção
equivocada da teoria do domínio do fato, no caso Mensalão, e as
prisões temporárias ilegais, no caso da Lava Jato, utilizadas para
obtenção de delações.
A
população aceita essas excrescências arbitrárias sob o pálio da
segurança pública. Claro, não há insegurança pública alguma, ao
menos não na dimensão em que é vendida, mas a ideia foi
definitivamente implantada nas mentes dos indivíduos, à semelhança
do que fez o personagem de Leonardo di Caprio no filme "Inception",
para novamente invocar a ficção como supedâneo da descrição da
realidade.
Especificamente
no Brasil, recentemente foram criados dois inimigos públicos:
primeiro, o PT, partido alçado pelo discurso hegemônico como
símbolo de toda a corrupção existente no sistema político; e,
segundo, o terrorismo, este como uma versão fraudulenta do modelo
copiado dos americanos e europeus.
Disseminação
do antipetismo e do terrorismo é uma espécie de fumaça ninja do
sistema hegemônico, distrações que afastam a atenção da massa do
real objetivo perseguido. São simulacros perfeitos para obter
aceitação popular do endurecimento jurídico-legal que, no futuro,
se voltará contra a própria população.
A
jaula de ferro da burocracia fortalece suas grades de contenção e
amplia suas garras, no projeto de enclausurar as resistências ao
modelo desejado, o neoliberalismo.
Como
dito no início, é muito difícil prever o destino social, mas é
possível antever tendências.
Dados
os elementos capturados da realidade atual, a previsão para o futuro
do Brasil e do mundo é bastante negativa. O novo discurso hegemônico
projeta nuvens sombrias no futuro de nossa democracia.
O
autoritarismo ronda nossos lares como lobos famintos e gozam da
aquiescência das pessoas, enganadas que foram pela ilusão criada de
que os lobos estão ali para protegê-las.
No
primeiro passo dado em lugar tido por indevido, serão comidas.
Esse artigo deveria ser mais debatido em todo o campo de conhecimento, especialmente nas ciências sociais, que têm pretensões científicas. Cita Gramsci e discute a hegemonia. Hoje temos a imensa hegemonia da indústria cultura, cujo os instrumentos (como os meios de comunicações) estão nas mãos dos chamados "formadores de opinião", como os jornalistas e os intelectuais acadêmicos que "fazem a cabeça" de uma massa de gente totalmente anestesiada por esses meios. Concordo quando afirma que os intelectuais acadêmicos, principalmente da área de ciências sociais, parte do pressuposto de são neutros e tentam desqualificar quem pensa diferente. A academia está cheia desses personagens. Esse artigo deveria merecer um debate não só no meio acadêmico, mas em todos os ambientes produtores de conhecimento, pois relativiza o poder de quem acha que está em busca de uma pretensa verdade, que tenta impor aos outros. A produção da "verdade", como diria Foucault, anda de mãos dadas com o poder. Está o Judiciário e os meios de comunicação que não deixa mentir. E ainda tem que fale num conhecimento "neutro", sem ideologias, eliminando a luta de classes.
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