No
ano de 2013, alcançando 42% do total de votos, Angela Merkel
consegue seu terceiro mandato consecutivo como mandatária da
Alemanha. A chanceler integra um partido conservador, algo como o
PSDB daqui. Os conservadores estão no poder alemão desde 1990, ou
seja, há 23 anos consecutivos.
Nos
Estados Unidos, em vários momentos da história os partidos
Democrata ou Republicano permaneceram longos períodos no poder,
através de reeleições sucessivas, embora com presidentes
diferentes.
Nesses
países não se imagina que a ausência de rotatividade partidária
no poder é “antidemocrática” ou que os partidos possuam um
projeto de eternização no poder através do qual tentam “manter-se
no poder a qualquer custo”.
Primeiro,
porque criticar um partido político, de forma pejorativa, sob o
argumento de que tal partido possui um projeto de poder revela a
profunda ignorância política de quem o faz. Afinal, os partidos
políticos foram institucionalizados nas diversas sociedades humana
justamente para atingir esse fim. Todo partido político representa
uma parcela da população com identidade ideológica sobre o tipo de
sociedade que deseja. Essa parcela tende a se sentir representada
pelo partido que possui projeto de poder que possua afinidade com sua
aspiração, sendo essa a razão de votar nele. Consequência lógica
disso é que todo partido almeja a perpetuação no poder pois
considera, apoiado no voto dos eleitores, que seu projeto de
sociedade é superior aos demais. Numa democracia, a perpetuação no
poder depende, obviamente, da aprovação popular estabelecida nas
urnas. Se alçado e mantido no poder através desse instrumento de
escolha, livre de vícios comprovados, a democracia foi assegurada,
independentemente do número de reeleições do partido eleito.
Segundo,
porque subsiste nos países mencionados, com democracia mais antiga
e, por isso mesmo, mais avançada e sólida, um conceito que por aqui
ainda parece provocar espanto em alguns: o princípio que confere a
cada cidadão o direito a um voto de igual valor. Desde que inexista
algum vício comprovado nesse princípio de igualdade entre os
eleitores, o processo democrático é aceito naturalmente, com a
maior parte da população escolhendo o candidato que pareça se
encaixar mais nos seus anseios e a menor parte resignando-se à
escolha.
Vale
destacar que as democracias maduras possuem, ao lado do sufrágio
universal, outros instrumentos de proteção das minorias contra a
tirania da maioria, possibilidade sempre presente. O principal desses
instrumentos é a Constituição, secundada pelo poder judiciário.
Constitui,
para dizer o mínimo, falta de maturidade política creditar a
vitória de determinado partido aos interesses individuais de quem
vota, algo como, por exemplo, qualificar de “voto de cabresto” os
votos de quem recebe bolsa-família. Ora, esse é justamente o
fundamento, não simplesmente do voto, mas de toda e qualquer ação
humana: a auto-proteção e a proteção das pessoas amadas.
Partindo
da noção de que não existe, ao menos em princípio, o que se possa
denominar propriamente de “interesse coletivo”, pois a expressão
representaria apenas a soma dos difusos interesses individuais
comuns, tem-se que é justamente a reunião das diversas massas
distintas de interesses individuais que, primeiro, fundamenta o
surgimento do que chamamos de coletividade ou sociedade, movidos por
um egoísmo inicial que só posteriormente enseja a noção de
pertencimento que passa a orientar a ação social no sentido de
tolerar o pensamento contrário. Segundo, justifica a democracia,
entendida como modo civilizado de mediação dos diversos interesses,
primeiro individuais e depois coletivos, conflitantes, sem o que
somente restaria a solução pela violência da guerra civil.
Terceiro, orienta e confere sentido ao voto de cada cidadão, que
vota segundo a própria noção utópica de sociedade desejada, que
embute necessariamente seus desejos individuais, os quais, agrupados
ideologicamente, se tornam desejos coletivos.
Dados
esses elementos, tem-se que votar no partido político que mais se
identifica com os próprios anseios individuais não constitui
exclusividade dos pobres.
A
soma dos interesses individuais da classe rica, por exemplo, fará
com que seus votos sejam direcionados ao partido político que se
proponha a manter o sistema financeiro movido pela ótica da
valorização das fortunas, mantendo-as, intactas ou aumentadas, nas
mãos de quem já as possui. A política de juros altos, por exemplo,
é um dos modos mais comuns de manutenção e aumento das riquezas
familiares. Não é sem razão, portanto, que sucessivos governos, de
todas as cores e partidos, mantenham inexplicavelmente os juros em
percentuais estratosféricos desde priscas eras.
A
classe média, por sua vez, é integrada, em grande parte, por
pessoas movidas pelos afetos da inveja, subserviência e ambição.
Inveja da classe rica, subserviência aos membros da classe rica e
ambição de integrar a classe rica. Por conta disso, historicamente
a classe média serve de apoio aos propósitos da classe rica, não
se identificando com a classe a qual de fato possui maior
proximidade, que é a classe pobre, esquecidos de que, em todo
solavanco da economia, grandes porção da classe média despenca na
escala sócio-econômica e se equipara economicamente à classe
pobre. Assim, essa classe tende a votar no partido político
preferido pela classe alta, opção que se acentua se dessa escolha
política de bajulação decorrer o sucesso de um projeto de
manutenção de tributação baixa, garantindo acréscimo financeiro
que permita adquirir bens de consumo em moda na classe alta, manter
suas viagens internacionais, empregados domésticos e outras
frivolidades típicas da classe. Deveriam saber que os membros da
classe alta, tomando ciência de que os signos de sua classe foram
saqueados pela classe média, imediatamente alteram suas
representações simbólicas, horrorizados. A classe média pode
rejeitar a classe pobre, mas é igualmente rejeitada pela classe que
inveja. E ainda dizem que a luta de classes está extinta...
Sendo
assim, considerando que a sociedade é movida fundamentalmente por um
princípio de egoísmo, nada mais natural do que presumir que a
classe pobre irá votar no partido cujo projeto de governo leve em
consideração a manutenção ou ampliação da assistência social,
melhoria da educação e da saúde públicas e da oferta de emprego e
renda, passando, minimamente, uma maior sensação de segurança
alimentar e habitacional.
De
pouco vale tapar os olhos: é assim que funciona a sociedade, é
desse modo que as pessoas se movimentam politicamente.
Não
aceitar esse jogo de interesses quando a balança se inclina
favoravelmente aos pobres, usando de artifícios retóricos como
redutores da validade ou importância do voto dos pobres constitui,
não somente uma explícita demonstração antidemocrática, mas,
acima de tudo, a materialização da tentativa de impor uma espécie
de elitismo denominada plutocracia (governo dos ricos).
Abra-se
aqui parênteses para destacar que a presunção antes mencionada,
relativa ao direcionamento do voto dos pobres, somente não está
absolutamente correta no que concerne à sua reprodução material,
real, em virtude da massiva influência da indústria cultural, que
altera insidiosamente o espírito do eleitor, fazendo-o se inclinar
por opções contrárias ao seu interesse, movido pela ilusão de que os interesses propagandeados equivalem aos seus. Somente ocasionalmente, como
parece ter ocorrido recentemente no Brasil, os pobres escapam dessa
armadilha discursiva e, de fato, escolhem partidos mais inclinados à
solução das questões sociais.
No
caso da Alemanha de Angela Merkel, é interessante destacar que esse
país possui um guarda-chuva assistencial com maior variedade de
espécies assistenciais e com valores bem superiores aos pagos no
Brasil, inclusive seguro-desemprego e algo similar ao bolsa-família,
chamado “prestação de recursos mínimos”. Diferentemente do
bolsa-família brasileiro, a ajuda assistencial alemã, apesar de
possuir valor mensal muitas vezes superior, sequer exige vinculação
da percepção do benefício à manutenção dos filhos na escola. Ou
seja, mais direito com menos obrigação.
Ainda
assim, quem, em sã consciência política, seria capaz de afirmar
que essa pletora de benefícios é a razão justificadora da
manutenção de Merkel no poder por tantos anos?
Todavia,
há no Brasil uma parcela da população brasileira, beneficiada pelo
acesso à educação e à cultura historicamente sonegadas à
população em geral, que pretende ser iluminada, com mais
conhecimento e sabedoria política do que a ralé. Por isso, nega
valor ao voto dos pobres e miseráveis, sob o pálio de serem eles
facilmente manipuláveis pelos políticos. Nesse caso, parece
subjazer um anseio por outra espécie de poder, a aristocracia
(governo dos melhores), que tampouco possui índole democrática.
A
manipulação da vontade do ser humano obviamente é possível, isso
é inelutável. Constitui, porém, sobeja ingenuidade, incrementada
por grande porção de vaidade e orgulho, considerar que tal “lavagem
cerebral” somente é passível de ocorrer com os desfavorecidos.
Pelo
contrário, é possível uma interpretação diametralmente oposta,
no sentido de que é a classe média a mais suscetível de ser
transformada em massa de manobra da super-elite. Isso porque seus
integrantes tendem a ingenuamente acreditar que seus interesses são
idênticos aos interesses dos bilionários. Esquizofrênica, a classe
média briga pela eternização desses valores, cegada pela ilusão
pueril de que um dia, talvez, quem sabe, se Deus ajudar, obterá as
mesmas graças. Olvida-se de que a estrutura da sociedade é montada
de tal forma que a mobilidade social é na prática uma
impossibilidade, correspondendo à sorte de ganhar uma loteria. As
exceções existem, claro, mas não como aberturas ao movimento
social, senão como justificadoras da regra da imobilidade.
Movida
por esse tipo de ingenuidade, acrescido do fascínio infantil pelo
consumismo frívolo, pela vontade de aquisição de cada novo gadget
eletrônico, exibidos como ícones de sucesso pessoal e
interminavelmente trocados por outros ultranovos, torna-se presa
fácil do discurso hegemônico da elite. Por conta disso, a classe
média personifica com certo orgulho o papel de boba da corte no
castelo da elite. Que outra explicação haveria para o desejo
fremente do desnecessário? Para o fetiche do objeto como revelação
do valor pessoal? Para a adesão incondicional aos interesses de uma
classe que historicamente a sodomiza politicamente? Para a ausência
de reflexão de natureza egoística sobre a possibilidade de
necessitar dos benefícios sociais destinados à classe pobre,
provenientes dos princípios de generosidade social que somente
encontra voz e eco nos partidos cuja ideologia é conceituada como
"de esquerda"? Outra não há, senão a manipulação
mental produzida pela propaganda do discurso de dominância contida
nos produtos da indústria cultural, cujo consumidor por excelência
é a classe média.
O
processo de inculcação ideológica é sutil, se inicia nas
primeiras falas, na intimidade dos lares, reproduzido pelas pessoas
nas quais o ser humano mais confia no começo da vida: os pais. Por
conta disso, as pessoas tendem a acreditar que, de fato, tudo que ela
pensa constitui pensamento original seu, de sua autoria, pensado de
forma racional, crítica e livre. É um processo que foi descrito por
Platão em sua alegoria da caverna, na qual somente as sombras da
realidade eram conhecidas pelos habitantes, motivo pelo qual as
sombras eram tidas como a própria realidade material. Os habitantes,
mesmo após apresentados à realidade verdadeira por um deles, que
havia descoberto a saída da caverna e visto a luz do sol,
recusavam-se a acreditar na realidade. Preferiam as sombras.
Ninguém
está a salvo dessa manipulação, mas há um paliativo e talvez até
cura: intensa busca de conhecimento e cultura diversificados. Dito de
outro modo: ninguém deixará de enxergar somente sombras se
descuidar do hábito de ler intensamente leituras adultas de
profundidade, não religiosas, sempre variando os pensadores para ter
acesso às diversas formas de reflexão sobre a realidade.
Destaquei
a leitura não religiosa por entender que esse tipo de leitura é
também vocacionada para a manipulação da vontade, mas não irei
aprofundar esse assunto aqui. Apenas ressalto que, formada a
consciência crítica, que é um antídoto eficaz, também essa
leitura se torna possível sem efeitos colaterais daninhos.
Somente
escapando da escuridão, somente obtendo uma visão mais clara acerca
dos interesses e das fragilidades humanas que movimentam e sempre
movimentaram a história, torna-se possível discernir entre os
valores verdadeiros e essenciais, que devem ser preservados, e os
falsos valores a serem descartados.
Ainda
assim, porém, para alguns jamais será possível desacreditar
completamente de que a caverna não representa o todo possível e que
as sombras não são a realidade.
Muitas
vezes a ilusão é mais confortável e aconchegante do que a
realidade.
Observação: republicação, com adaptações, de texto originalmente escrito em setembro de 2013.
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