O
primeiro atributo necessário à pessoa que busca um conhecimento
honesto sobre qualquer assunto é a humildade de reconhecer a própria
ignorância. O segundo é admitir a existência de um sem números de
pessoas - sábios, pensadores e cientistas - que se debruçaram sobre
o tema exaustivamente e, a partir de uma reflexão profunda,
produziram e divulgaram obra do pensamento através da qual
exteriorizam, não somente os contornos, a superfície, mas uma visão
de profundidade sobre todos os aspectos da questão, alguns inclusive
apresentando as respostas possíveis para a solução do problema. O
terceiro é aceitar os ensinamentos desses sábios para, a partir
deles, construir uma identidade intelectual própria sobre a matéria.
É
perfeitamente saudável questionar o trabalho intelectual de
pensadores e cientistas, todavia exigindo-se, primeiro, o
conhecimento da obra criticada e, segundo, uma capacidade técnica
própria - cognitiva e intelectual - para produzir conclusão
contrária, a ser demonstrada de forma racional e lógica. O
"achismo", nesse campo, é inadmissível. Pode-se dizer
caber a qualquer um não aceitar determinada conclusão, mas não se
pode aceitar essa recusa como refutação. É apenas pirraça
intelectual que, se não freada pela humildade, transmuta-se em mera
arrogância autoritária.
A
palavra chave aqui é humildade. Sem ela, vence a soberba e prevalece
a ignorância, possivelmente decorrente da síndrome de superioridade
intelectual ilusória denominada Efeito Dunning-Kruger. Em resumo,
trata-se de um fenômeno muito mais comum do que se imagina ou se
gostaria e que cega as pessoas sobre a extensão do próprio
conhecimento ou habilidade, que deliram ser muito superior ao que
efetivamente possuem. Grosseiramente falando, trata-se do idiota
ignorante que pensa saber mais do que o sábio erudito. Cegado por
essa superioridade ilusória, o iludido resta inapto para identificar
os limites da própria habilidade, reconhecer a amplitude de sua
inabilidade e admitir a maior habilidade alheia. Isso ocorre
justamente porque o iludido não possui as ferramentas intelectuais
necessárias à constatação da própria incompetência e à
identificação do que é competência real quando a vê no outro.
Infelizmente, não há cura externa ao iludido, que somente será
capaz de admitir sua inabilidade após, e se, adquirir o conhecimento
do qual carecia, o que depende de um esforço espiritual interno.
Caso contrário, morrerá reafirmando a própria idiotia.
Pelo
que se observa dos debates públicos, esse efeito pernicioso que
conspurca a vontade possivelmente deve ser tanto mais intenso quanto
maior for o grau de escolaridade do iludido e sua inapetência
intelectual sobre assuntos que extrapolem a sua área de atuação
profissional, o chamado "especialista sem espírito".
As
ciências humanas, por não serem propriamente ciência, no sentido
estrito da palavra, é o reduto preferido de atuação dos iludidos
pela superioridade ilusória. São poucos, muito poucos, os que as
conhecem com um mínimo de aprofundamento, os que leram ao menos um
livro de história, de filosofia ou de sociologia, mas são muitos,
muitos mesmo, os que se consideram aptos a falar em nome delas.
A
história e a filosofia, com suas filhas sociologia, antropologia,
psicologia, ciência política, teoria do direito e economia são,
provavelmente, os ramos mais instigantes a integrar o cabedal de
conhecimento humano, pois são esses saberes que se preocupam com a
humanidade enquanto subjetividade e interssubjetividade, ou seja, com
o indivíduo como um elemento constituinte da coletividade em intensa
e próxima inter-relação com os demais. Mais do que as ciências
naturais, como física e química, cujos objetos - por exemplo,
partículas atômicas e cadeias de elementos químicos - são mais
distantes da realidade vivida, as humanas são instigantes justamente
por que nos identificamos com seus objetos de pesquisa, que são o
indivíduo e suas diversas formas de vinculação com os outros, ou
seja, nós.
Cada
um desses distintos ramos de conhecimento produziu e produz
incontáveis narrativas sobre a conduta humana e civilizatória, que
são realizadas à luz da aplicação do método científico. Não se
trata meramente de "achar" que algo é assim ou assado, mas
de coletar elementos no campo de observação e conduzi-los ao
microscópio epistemológico da análise intelectual parametrizada.
Um historiador, um sociólogo ou um antropólogo não se resignarão
com apenas um dado proveniente de uma fonte para situar o objeto da
pesquisa e, assim, categorizá-lo. Sempre que possível, irá
rebuscar todas as fontes possíveis para conferir a maior
credibilidade alcançável sobre a conclusão que obtiver.
Imagine-se
um antropólogo fundando sua pesquisa atual sobre determinada tribo
da Polinésia em um único artigo de jornal do século XVII.
Dificilmente será levado a sério. O antropólogo certamente irá à
Polinésia para conhecer presencialmente a tribo em questão e,
sempre que possível, nela conviverá por algum tempo e tentará
mesmo aprender sua língua para assim ser capaz de determinar com
maior precisão seus hábitos, costumes e idiossincrasias. Publicada
sua obra, pode-se discutir as conclusões obtidas, mas sempre com a
extrema reserva da humildade de quem não possui as mesmas fontes, os
mesmos saberes e nem o mesmo tempo de reflexão.
Num
comentário sobre política, um internauta lamentava o fato de que,
segundo ele, "a academia se encontra entulhada de
esquerdopatas". A afirmação, muito comum, além de ser marcada
por um conteúdo autoritário que embute a vontade velada de
silenciar a voz contrária, é típica de pessoa acometida pela
síndrome de superioridade intelectual ilusória: o crítico
considera-se superior aos acadêmicos que condena. Claro que a assertiva não é,
em absoluto, verdadeira, pois a academia produz trabalhos múltiplos,
polissêmicos e polissonantes. Não são poucas as oportunidades nas
quais, divulgada a fala de um acadêmico respeitado, ao mesmo tempo
vozes de todas as cores partidárias, muitas vezes das mesmas cores, a ela se opõem acidamente ou
aderem entusiasticamente, o que revela que, na verdade, talvez o
pensamento publicado tenha sido pautado por uma isenção e um
equilíbrio que passaram despercebidos, não tendo o pensador
incorrido em filiação a qualquer ideologia político-partidária.
Talvez
seja verdade que exista um leve predomínio do pensamento de esquerda
entre os acadêmicos das ciências humanas, mais propensos a
idealizar uma sociedade mais justa e menos desigual. Isso, todavia,
longe de ser repelido com violência leviana, deveria ser motivo de
reflexão por parte daquele que sinceramente admitisse não possuir
os mesmos atributos de conhecimento. Ora, se um grupo de pessoas sem
afinidades entre si no tempo e no lugar, após uma vida dedicada a
estudar e refletir sobre a sociedade, passa a entender que o mundo,
tal como se apresenta, é profundamente injusto socialmente, com
repartição desigual dos benefícios oriundos da Terra, e mereceria
uma refundação político-econômica como meio de mitigar os efeitos
daninhos observados, quem sou eu, que não me dedico a tal estudo,
para dizer que esse grupo é formado por "esquerdopatas"? É
muito provável que a afirmação da "esquerdopatia acadêmica"
tenha sido comemorada, pelo internauta que a proferiu, como
demonstração de inteligência racional, mas é pura idiotia
arrogante, um efeito da superioridade ilusória da qual padece.
Obviamente
que não cabe advogar a renúncia à crítica e uma espécie de
adesão incondicional a argumentos de autoridade. Apenas se ressalta
que a refutação de um trabalho sério de pesquisa, realizado com
base epistemológica, não pode ser levianamente produzida na base do
"achismo" ou a partir da primazia da incredulidade
desfundamentada. Ao ser confrontado com uma pesquisa acadêmica,
realizada por pesquisadores da Unicamp, que demonstrava que o
programa bolsa-família não produz o voto de cabresto e possui baixo
índice de desvio, um crítico limitou-se a afirmar não acreditar
nisso. Por quê?, indagou-se ao crítico, que respondeu que não era
isso que "via" nas pessoas que conhecia e que eram
beneficiárias do programa. E ponto final. Uma pesquisa que envolveu
trabalho de campo com centenas, talvez milhares de beneficiários do
programa, em um sem número de municípios distintos, além de dados
obtidos em instituições como IBGE e posterior adensamento
intelectual na redação da monografia, que sempre exige longa
reflexão, de meses ou mesmo anos, foi jogada fora em cinco minutos
de conversa porque não era isso que o iludido "via" em
três ou quatro pessoas que conhecia, a acreditar em sua palavra. Não
há como remar contra argumentos desse tipo, que representam um
verdadeiro tsunami de insipiência.
Nos
últimos anos parece que houve uma epidemia de ocorrências do Efeito
Dunning-Kruger. Para piorar as consequências daninhas da prevalência
da ignorância ressentida sobre a inteligência verdadeira, a voz da
ilusão de superioridade intelectual predomina no discurso que é
ressoado pela mídia, multiplicando o seu efeito devastador.
Em
prejuízo da construção de uma sociedade mais equilibrada, menos
desigual, pari passu com a figura do idiota arrogante, movido
por superioridade intelectual ilusória, têm-se os intelectuais
verdadeiros que escrevem textos de forma totalmente hermética,
prenhe de jargões incompreensíveis para os leigos, que são
produzidos para ser publicados nos jornais, obviamente com a intenção
de alcançar o público comum, não acadêmico. Tais textos são
dirigidos a um público diferente daquele formado pelo universo dos
idiotas arrogantes: os ignorantes deslumbrados.
Em
termos sociológicos, quanto à discussão pública dos dilemas
sociais a serem enfrentados coletivamente, discursos teóricos
construídos com alta complexidade, e não direcionados ao estrito
âmbito da academia, longe de solução, costumam ser um problema. Os discursos reducionistas também complicam as coisas. Os
primeiros com muita frequência são paralógicos, muitas vezes
simplesmente vazios de conteúdo e em outras apenas sofistas. Em
ambos os casos buscam produzir a ilusão da verdade para alcançar um
objetivo oculto, em geral, mas não necessariamente, apologéticos ao
conservadorismo. Quanto mais profundamente se deseja enganar muitas
pessoas simultaneamente, mais palavras fora do comum são necessárias
ser ditas para o sucesso do intento. Os ignorantes deslumbrados ficam
fascinados por textos que não compreendem, entendendo-os como
demonstração de profundo conhecimento de quem os escreve.
O
mesmo ocorre com os discursos reducionistas. O reducionismo na
conversa política busca dar a falsa impressão de que a ação
coletiva almejada é facilmente alcançável, como, por exemplo, na invocação da assim chamada "vontade política", uma espécie de varinha
de condão política que tudo viabiliza, em relação a uma certa figura pública, sem levar em conta o grau de
dificuldade da ação pretendida, não somente com relação às
condições materiais exigidas, como na amplitude do convencimento
político-institucional necessário. Parece claro que a vontade
política capaz de solucionar a maioria dos problemas coletivos
dificilmente será proveniente de um determinado agente político - caso em
que seria praticamente anódina - possuindo potência transformadora somente aquela que é adotada
pela maioria de dado universo de pessoas políticas com efetivo poder. Historicamente, tal vontade política dos poderosos, no
que concerne aos reais interesses do povo, ocorre apenas em situações
especialíssimas, como revoluções ou calamidades públicas.
Como
costuma ocorrer em relação a todas as instituições humanas,
parece que o equilíbrio repousa no meio. Nem complexificação
exagerada, nem reducionismo extremo.
E,
claro, tentando reconhecer valor ao conhecimento de quem realmente o possui.
Esse artigo deveria ser tema de reflexão para a grande maioria dos brasileiros idiotas/analfabetos.
ResponderExcluirÓtima reflexão. A todo momento vejo exemplos dessa síndrome. Doença social grave.
ResponderExcluirSeria o efeito Dunning-Kruger chamar de golpe a aplicação constitucional de uma lei de 1950 presidida por ministro do STF e votada pelas 2 casas do Congresso?
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