domingo, 21 de agosto de 2022

Invasão da Ucrânia, guerras híbridas e o retorno da guerra fria

 

Immanuel Wallerstein, sociólogo norte-americano autor do livro O Declínio do Império Americano, sustenta que a sociedade humana está no limiar de uma profunda alteração no modelo de sociedade. Segundo ele, há um esgotamento do modelo capitalista, o que conduzirá a humanidade a uma encruzilhada na qual deverá optar por um novo modelo, aparentemente com duas alternativas: (a) retorno ao regime de poder centralizado e excludente similar às monarquias absolutas e seus estamentos hereditários; ou (b) criação de uma sociedade focada na dignidade humana, com redução das diversas desigualdades (econômica, cultural, racial, sexual, etc). A primeira opção de sociedade será adotada se a narrativa dos ricos for vitoriosa, o que Wallerstein denomina de “espírito de Davos”. Caso os pobres vençam essa guerra, estabelecendo as bases ideológicas da nova sociedade, será a vitória do “espírito de Porto Alegre”. Em outras palavras, trata-se de uma guerra que poderá definir a ascensão de um modelo de sistema social opressivo, tipo medieval, ou de um sistema libertário, inovador, sem paralelos na história.

A guerra em direção à mudança do modelo socioeconômico já se iniciou há tempos, supostamente desde a derrubada das torres gêmeas americanas, em 2001. São exemplos de batalhas narrativas as primaveras árabes, as jornadas de junho de 2013, a operação Lava Jato e, agora, a invasão da Ucrânia, dentre inúmeras outras. É chamada de guerra híbrida porque, embora possa ocorrer o uso de forças armadas convencionais e seus indefectíveis armamentos, sua maior arma não são os mísseis balísticos, mas a desinformação, a distorção dos fatos, o uso da pós-verdade. O objetivo é a manipulação do pensamento de todo um povo, conduzindo-o, não somente a aceitar, mas a desejar uma mudança que lhe é desfavorável, sendo benéfica apenas ao capital.

A ideologização é de tal ordem que provoca sentimentos contraditórios no espírito do próprio indivíduo. De repente, a pessoa se vê compartilhando o posicionamento com pessoas e instituições em relação às quais sentia nojo. Brasileiros com inclinação política de esquerda, por exemplo, repentinamente se veem, relativamente à invasão da Ucrânia, apoiando a Rússia, tal e qual o presidente que tanto repudiam. A guerra de narrativas é especialmente neurotizante numa época na qual as pautas de igualdade e identidade se tornaram importantes. Todos desejam parecer politicamente corretos e temem o cancelamento nas redes por conta de alguma manifestação infeliz. Por conta disso, nunca tantos subiram no muro, movidos por imenso receio de sequer parecer eticamente incorreto. No mundo atual, exposição de opinião tornou-se negócio de alto risco. Nesse ponto, vale lembrar que, embora de fato quase todo posicionamento humano se estenda num gradiente entre o mínimo e o máximo, o fato é que existem coisas efetivamente binárias, ou seja, em relação às quais não há alternativa entre o sim e o não. Para tais coisas, ou é ou não é e, não raras vezes, nenhuma das duas possíveis posições decide a situação com absoluta justiça; são os chamados hard cases.

A questão da invasão da Ucrânia pela Rússia é um desses casos difíceis: não há posicionamento bom para além de qualquer dúvida. A sempre presente belicosidade dos EUA, a debilidade histórica da OTAN perante os americanos, a pusilanimidade dos países europeus, o despotismo pessoal de Putin e a falta de noção sobre a própria importância geopolítica da Ucrânia, tudo isso colaborou para o impasse atual. Um primeiro ponto a destacar, e deixar claro para além de qualquer dúvida, é que o sofrimento do povo ucraniano é injustificável. Nenhum povo merece os horrores causados por uma guerra. Os ucranianos são vítimas de arrogâncias e mesquinharias internas e externas. A invasão do território russo é uma inegável ferida na soberania das nações e na autodeterminação dos povos. O lamentável episódio colocou a humanidade novamente sob o império do pensamento binário “não gosto dele mas o outro é pior”, tanto dos que defendem um lado, como o outro. Por princípio, não se pode defender a violação da soberania de um país por outro, muito menos quando o invasor é significativamente mais forte do que o invadido. A época de invasões territoriais deveria ter ficado no passado bárbaro da humanidade.

O problema é que nem sempre se pode resolver certas situações quando apenas um dos lados está disposto a se submeter ao comportamento civilizatório desejado, com respeito ao ordenamento internacional, que se espera das nações. Os EUA jamais respeitam decisões de organismos multilaterais, como a ONU ou qualquer outro, que se revelem contrárias às suas próprias diretrizes geopolíticas. Vou repetir: jamais! Os estadunidenses se veem como protagonistas absolutos de sua própria história, sem dever de obediência a nada ou ninguém que não sejam eles próprios. Por conta disso, a Rússia se viu na contingência de agir na ilegalidade antes que a adesão da Ucrânia à OTAN fosse concluída, pois, a partir daí, uma agressão a esse país representaria um ofensa direta a todos os países que integram o tratado, o que inclui a possibilidade de uso do armamento nuclear de vários deles. Capitaneados pelos EUA, não tenham dúvida sobre qual seria a posição da OTAN em tal hipótese.

A invasão praticada pela Rússia, sem dúvida alguma, é ilegítima segundo os tratados e normas internacionais. Não se discute isso. Ocorre que, antes da invasão, seu posicionamento e suas ponderações, reivindicados infrutiferamente durante anos a fio, eram claramente mais pacíficas e racionais do que as do outro lado. Os russos temiam a extensão da OTAN até suas fronteiras diretas. É um dilema geopolítico idêntico ao enfrentado pelos EUA durante a crise dos mísseis cubanos, em 1962: aproximação do inimigo para uma linha muito próxima da fronteira através da utilização de um terceiro território, soberano.

Pode-se discutir se um terceiro estado possui ou não o direito de aderir a qualquer tratado que desejar, independentemente das pendegas existentes entre outros países. Dentro do conceito teórico de soberania nacional, a resposta indubitável é que possui. Na praxis geopolítica, porém, isso está muito longe de pôr fim à controvérsia. Qual o limite de passividade que se espera de um governo que deseja proteger o seu povo e seus interesses? Imagine-se o governo brasileiro ciente de que o Paraguai deseja instalar centenas de mísseis nucleares, próprios ou de terceiros, ao longo de sua fronteira com nosso país. Em nome da soberania paraguaia deveríamos pacificamente aceitar a instalação e, a partir daí, aprender a lidar com o medo de um ataque? A indagação mais relevante aqui é: por que motivo alguém instalaria mísseis direcionados ao quintal do vizinho, senão com a intenção de utilizá-los, material ou psicologicamente, para submissão da vontade aos seus interesses?

Responda como quiser, mas o fato é que, na crise dos mísseis cubanos, o governo estadunidense de então não teve dúvida: colocou seu armamento nuclear em Defcon 2, ou seja, nível vermelho, pronto para uso. Isso ocorreu há muito tempo no passado, mas não há dúvida de que a ação americana seria a mesma se, hoje, a Rússia fizesse um acordo com o México para instalar mísseis ao longo do Rio Grande. É exatamente o mesmo passo defensivo tomado por Putin. Sem entrar aqui no mérito do acerto ou desacerto da decisão, ao colocar o armamento nuclear da Rússia em nível de dissuasão imediata, Putin foi claro em ameaçar apenas quem interferisse militarmente contra a Rússia, o que é um passo lógico: em qualquer guerra, quem fortalece o adversário torna-se, de imediato, um inimigo, ou seja, um alvo estratégico.

Por outro lado, não só a Rússia, mas todos os países que possuem ogivas nucleares ameaçam o mundo. A mera existência de bombas nucleares é uma ameaça para a humanidade, principalmente quando se cogita lançá-las contra países que também as possuam e, por isso, sejam capazes de retaliar maciçamente. O total desarmamento nuclear é uma imposição civilizatória que já tarda. Não há razão lógica capaz de justificar que um determinado país tenha uma arma dissuasiva potencialmente exterminadora da civilização.

Vale recordar que a OTAN foi criada especificamente com o propósito de conter militarmente a então União Soviética, o que significa a Rússia nos dias atuais. Isso coloca o tratado do Atlântico Norte no lado oposto ao dos interesses russos, sendo-lhes, pelo contrário, um elemento de insegurança que, tal qual a espada de Dâmocles, paira ameaçadora e eternamente sobre o país. Embora, como dito, o medo do comunismo tenha acabado, a ação da OTAN continuou, o que não se justifica e é um fator de instabilidade permanente na Europa e em suas fronteiras. Assim como os artefatos nucleares, a OTAN também precisa acabar. Sua permanência encontra explicação apenas como braço armado dos interesses corporativos dos países membros da organização e de eventual direcionamento do modelo que prevalecerá na fase que sucederá a selvageria capitalista atual. Em ambos os casos, passa-se necessariamente pela opção entre a manutenção da hegemonia unipolar americana e o multilateralismo que Rússia e China, e a grande maioria de todos nós, parecem desejar.

Disso decorre que EUA, países europeus e, portanto, a OTAN, estão em lados opostos ao de Rússia e China na guerra híbrida que se trava em torno dos interesses que prevalecerão. Disso resulta o maniqueísmo observado nas torcidas das redes: a Rússia má contra o ocidente bom ou vice-versa. A partir daí, mesmo os que não apreciam a personalidade autoritária de Putin, suas inclinações ditatoriais, sua manifesta homofobia e possível misoginia, acabam dando apoio às ações russas em função de um sentimento ainda mais negativo que sentem em relação aos Estados Unidos. Inclusive porque sabe-se que os EUA são muito mais ofensivos em relação à soberania das nações do que a Rússia e jamais se viu tanto repúdio internacional às violações que praticam. Ao que parece, o imaginário popular relativo à invasão russa constrói uma dicotomia que opõe um evidente antidemocrata preconceituoso (Putin) a uma psicopatia sanguinária que posa de libertária (a geopolítica dos EUA).

Primaveras árabes, ascensão da extrema-direita verificada no Brasil e no mundo, tudo isso é produto direto do caldo de desânimo popular com a política cozinhado no forno discursivo das guerras híbridas. O orgulho difuso e vazio do indivíduo em “ser contra tudo o que está aí” representa a vitória da elite do poder em uma batalha da guerra narrativa. O objetivo inicial é a instalação dos prepostos do “espírito de Davos” nos mais estratégicos e importantes cargos políticos ao redor do mundo. Neles instalados, atuarão por via da democracia para, deturpando-a, endurecer o regime, pavimentando o caminho para o modelo medieval que almejam.

A ascensão da extrema-direita vai ao encontro desse intuito. Há um propósito deliberado em dar relevância a pessoas com discurso contrário à dignidade da pessoa, seja racismo, homofobia ou qualquer outro pré-juízo desse tipo. Embora para os fins últimos do capital, em sua base teórica, seja pouco importante a raça ou a orientação sexual da pessoa, desde que seja ela uma colaboradora do sistema, uma consumidora, o fato é que, para o poder é importante a existência e multiplicação do homo sacer, indivíduos desprovidos de valor social, totalmente submetidos ao sistema, privados de direitos, que podem ser mortos quando for conveniente, como ocorria no absolutismo. Essa é a razão do discurso que, distorcendo a realidade, beneficia trumps e bolsonaros mundo à fora. O ressurgimento da retórica nazifascista é produto direto da desinformação provocada pelas guerras híbridas sustentadas pela elite do poder.

Seja como for, a lesão internacional à soberania da Ucrânia está posta e há que se analisar e tentar predizer seus resultados. Independentemente do desenvolvimento do conflito, sua duração e resultado final, há os que apostam no retorno da guerra fria entre americanos e russos por tempo prolongado no futuro. Se isso estiver correto, essa briga ideológica pode resultar em frutos positivos para a humanidade, exatamente como ocorreu na guerra fria anterior. Artifício de dominação euroamericano criado sob o falso discurso do anticomunismo, que pôs, de um lado, americanos e europeus, e, de outro, os soviéticos e demais países comunistas, o período da guerra fria testemunhou a redução da desigualdade de renda no mundo, alcançada através do chamado estado de bem-estar social (welfare state). Ao contrário do que se possa supor, não se trata de uma criação da esquerda, dos “comunistas”. Surge do pensamento liberal na Europa como mecanismo de defesa contra a disseminação do comunismo soviético. Os liberais econômicos de então decidiram distribuir um pouco mais de seus lucros como meio de desencorajar os trabalhadores ao engajamento na luta pelo sistema comunista. Mudaram para manter tudo como estava.

A existência da União Soviética exercia um poder de dissuasão sobre o capital, obrigado a reduzir a intensidade da rapinagem e valorizar o trabalho para evitar a atração gravitacional imposta pelo comunismo. Tanto é assim que o fim do medo do comunismo, ou seja, o fim da guerra fria, com a extinção da União Soviética, resultou em imediato retorno à voracidade liberal capitalista anterior, agora denominada “neoliberalismo”. Poder econômico absolutamente livre sempre significou, e sempre significará, exploração absoluta do trabalho humano, inclusive através da escravidão, se permitido for.

É o que se assiste no Brasil desde o golpe contra Dilma, num processo de desvalorização do trabalho e dos institutos sociais que se iniciou com as pautas bombas do Congresso capitaneadas por Eduardo Cunha, cujo objetivo era paralisar as ações do governo e provocar uma catástrofe na economia que, depois, seria atribuída à incapacidade política e administrativa da presidenta Dilma e, via de consequência, ao PT. Tudo o que veio depois do golpe, com a chamada flexibilização da legislação protetiva do trabalho; as indefectíveis reformas da previdência; a redução das despesas públicas por vinte anos, pouco importando para a elite do poder seus impactos em educação, saúde, segurança pública e outras políticas públicas; a venda a preço de banana de ativos públicos importantes para o povo, em benefício do lucro do capital privado; tudo isso se insere nesse processo de retorno à selvageria capitalista anterior à guerra fria.

O que está em jogo é o comando da repartição dos recursos públicos no sistema, tanto no que está em andamento, como se apresenta atualmente, como no eventual modelo que o substituirá. Isso vem ocorrendo num cenário cada vez mais fragilizado economicamente e com população que aumenta por simples inércia. Trata-se de decidir, numa realidade na qual emprego e, portanto, renda escasseiam em virtude da tecnologia e da especulação financeira, o valor que preponderará depois: a dignidade humana ou a suposta liberdade plena de ficar cada vez mais rico e/ou poderoso.

Num ambiente selvagem assim, o medo que um macho alfa sente de perder a liderança para outro pode redundar em benefício para os desvalidos do bando, que passam a ser bajulados/alimentados pelos líderes brigões para a obtenção de apoio. Ao contrário do que diz o ditado, na briga entre o rochedo e o mar, o mexilhão não é prejudicado, mas beneficiado pelos nutrientes trazidos com o turbilhão.

Uma nova guerra fria, com americanos e europeus de um lado e Rússia e China do outro, traria de volta, necessariamente, a multipolaridade geopolítica. Com isso, pode ser capaz de também fazer retornar a relativa tranquilidade presente na guerra fria do passado, um período menos bélico do que o atual.

Não se deve desejar a guerra e seus inúmeros malefícios. A guerra é um mal, sempre. É o horror, o horror! A guerra fria, no entanto, não é convencional, com intenção de destruição física imediata. Possui maior similaridade com práticas de desobediência civil, adotando-se ações vocacionadas à produção de desânimo no espírito do oponente.

Os desprivilegiados do mundo são muitos, incontáveis; necessitam de auxílio. Se a disputa entre machos alfa, travada basicamente no âmbito meramente discursivo, é capaz de minorar a dor dos despossuídos, só resta, aos que se importam, torcer pela briga.

Publicado originalmente no jornal GGN, em 04/03/2022, aqui.

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