A
percepção do branco somente é possível a partir da existência do
negro. Aqui não se trata de etnias ou racismo, mas de polarizações.
O
ser humano é evolutivamente um animal polar. Sua realidade não é
meramente descritiva, mas fundamentalmente baseada em comparações.
A pessoa não gosta do amarelo por ser amarelo, mas por considerá-lo
mais belo do que o verde, por exemplo.
A
ausência de comparações é o útero materno da infelicidade e da
depressão. Sem a polarização, a realidade empobrece ao nível da
indescritibilidade, tornando-se quase inexistente em termos de
sensações. Num cenário de vácuo comparativo, as emoções exaurem e morrem.
Por
que o ser humano deseja tanto a riqueza? Porque, por comparação, percebe as
dificuldades que atravessam os que não a possuem. Primitivamente, dificuldades vinculadas à carência alimentar, fome, doença e morte. Mais modernamente, ausência de mobilidade, social e física, e de poder de consumo.
Da polarização
riqueza x pobreza emerge o desejo fremente de aquisição das benesses da primeira e a
repulsa aguda de se encontrar no estado indigno da segunda.
Por
que o rico tem horror ao pobre? Não se trata de temor de convulsões
sociais ou de precaução contra ataques ao patrimônio e à vida.
Isso existe também, mas não constitui a origem do horror. O horror
que o rico nutre pelo pobre é um sentimento caracterizado
primacialmente por extrema aversão e nojo. Trata-se de repugnância
e vontade de manter distância.
Mesmo em situações de tranquilidade
social e ausência de riscos à segurança pessoal, incomoda o rico a
visão de um mendigo recolhendo alimentos numa lixeira, exibindo seu
corpo esquálido, os olhos fundos de um crânio em lugar de uma face
humana ou simplesmente de um andarilho sujo perambulando pelas ruas
em suas roupas esfarrapadas. Logo surge a necessidade de evitar essa
presença em lugares ricos e elegantes, como condomínios fechados e
shoppings, os bunkers da opulência.
Historicamente, sempre que a conjuntura social-política assim
permite aos ricos, surgem as leis de segregação e os guetos.
A
percepção dos ricos em relação a dezenas de jovens ricos andando
em conjunto num shopping é a de um grupo de adolescentes curtindo a
vida. O mesmo grupo, se formado por pobres maltrapilhos, torna-se um
“rolezinho” a ser combatido com toda a força do aparato
jurídico-policial estatal. As favelas são praticamente guetos nas
grandes cidades, de onde os pobres devem evitar sair.
Qual
a razão disso? A razão é a mesma pela qual algumas vezes o ser
humano demonstra um misto de repulsa e atração por filmes com
imagens escatológicas: o pobre representa o outro polo da riqueza, é
o reflexo do rico no espelho da representação da realidade social.
Em
outras palavras, o rico de hoje é sempre um potencial pobre do
amanhã. O pobre é uma visão a ser evitada pelo rico pois lhe
fornece uma perspectiva sombria de seu possível futuro.
O
pobre, contudo, é o fator de comparação do rico e este não consegue evitar o desejo de vê-lo. Porém, diferentemente de
um imã, onde os polos sempre se repelem, no imã social essa repulsa
possui mão única. Somente os ricos negam os pobres; os pobres, por
outro lado, admiram os ricos. A admiração dos pobres decorre de
possuírem a mesma aspiração ao poder, que neles é mera potência.
Porém,
indaga-se: se os ricos tem horror aos pobres e quer deles manter
distância, por que existem pessoas pobres se os ricos possuem o
poder de simplesmente eliminá-los? Eliminar tanto no sentido material, pois a pobreza no mundo não é inevitável, como fisicamente mesmo, dado que os exércitos estão a serviço dos ricos.
A resposta já foi dada acima: o
ser humano é um ser polar, cuja descrição da realidade depende da
existência de contrapontos. Sem os pobres, a riqueza não possuiria
qualquer valor simbólico.
O
que é a riqueza, como fartura, senão a negação da pobreza, como
carência? De que forma seria possível sentir-se especial senão
através da comparação da rara exuberância com a disseminada
privação?
O
rico tem horror, mas ao mesmo tempo necessita da presença do pobre,
pois, ao fim e ao cabo, é do pobre que decorre a dimensão
emblemática de sua riqueza. Como nos filmes escatológicos, é um
tipo de horror que magnetiza o rico e o faz permanecer assistindo à
pobreza no plano do real como se estivesse na distância confortável
de um documentário.
A
riqueza atual do mundo, acumulada nas mãos de menos de meio por cento
da população mundial (cerca de trinta e dois milhões de pessoas),
seria várias vezes suficiente para extinguir completamente, e para
sempre, a pobreza do mundo.
Por
que isso não ocorre? Embora possam ser muitas as respostas,
basicamente porque o ser humano é um animal polar que precisa
preservar o paradigma contrário para manutenção de seu equilíbrio
emocional.
O
rico preserva a fome e a pobreza para se sentir especial, para se
sentir melhor do que o outro. A pobreza é a nutriz do ego e da
vaidade do rico.
Nesse
caso, talvez seja melhor classificar o ser humano como um animal
bipolar.
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