O
mundo finalmente sucumbira a um conflito nuclear mundial.
Até
onde se sabia, dos escombros daquilo que um dia fora uma orgulhosa
civilização humana, com todas as suas metrópoles, somente restara
um perdido condomínio no meio da floresta amazônica.
Sobrevivera
por sorte, por estar escondido no meio da floresta. Era um grande
condomínio rural horizontal onde se praticava uma experiência de
fazenda comunitária. Praticamente uma pequena cidade, nele residiam
quase duas mil pessoas que viviam de forma isolada, desenvolvendo uma
economia mínima, autossuficiente e autônoma. Os próprios
residentes plantavam e criavam todo tipo de cultivo e de animais.
Seus
fundadores eram pessoas idealistas que se uniram na criação do
condomínio, desejosos de vivenciar uma experiência de comunidade
coesa e igualitária, assim fugindo ao caos da sociedade capitalista
e consumista, na qual as pessoas eram valorizadas sob a métrica de
suas posses.
Juntaram
os recursos que possuíam e adquiriram as terras em conjunto, pondo
toda sua energia, física e espiritual, a serviço de um novo tipo de
comunidade. Talvez fossem apenas saudosistas, retornando a um modo de
vida considerado ultrapassado.
A
notícia do fim do mundo jamais chegou àquela comunidade. Isolados,
distantes selva amazônica adentro, haviam resolvido não manter
contato permanente com o mundo lá fora. Somente meses depois, quando
necessitaram de produtos que a comunidade não conseguia fabricar e
tiveram que ir à cidade, viajando duas semanas de barco,
testemunharam diretamente a hecatombe e se assombraram. Todas as
cidades pelas quais passaram estavam destruídas e vazias.
Diversas
expedições foram enviadas na tentativa de localizar povoados
sobreviventes. Nada foi encontrado, nenhuma alma parecia ter
sobrevivido para além das cercas do condomínio.
Sem
saber exatamente o que havia ocorrido, resolveram prosseguir com suas
vidas, pois não havia alternativa.
O
condomínio tornara-se algo como uma nova arca de Noé. Seus
moradores eram os novos Adãos e as novas Evas destinados a perpetuar
a espécie.
Até
então eram felizes, viviam em idílica paz, resolveram permanecer
assim.
O
condomínio não tinha um síndico ou qualquer pessoa como líder,
mas um conselho comunitário, composto por dez pessoas escolhidas
pelos moradores para tomar as decisões mais corriqueiras, coisas do
dia-a-dia. As decisões mais importantes era tomadas por aclamação
por todos os moradores maiores de dezesseis anos reunidos na praça
central, chamada de Ágora em homenagem aos gregos e ao espírito
democrático que os envolvia. Era um imenso círculo sem paredes, com
cobertura de sapê, mobiliada com dezenas de bancos de madeira bem
compridos, onde podiam sentar-se, ao mesmo tempo, pelo menos dez
pessoas. Os imensos bancos ficavam alinhados em círculo. No meio da
Ágora havia um palco circular redondo, posicionado mais alto dos que
os bancos, de onde se podia discursar para a plateia. Era também lá
onde se realizavam os espetáculos públicos.
E
assim era a vida no condomínio, com seus habitantes solidarizando-se
uns com os outros, vivendo em harmonia, até que souberam que estavam
sozinhos.
Para
muitos dos moradores, a aposta na experiência comunitária foi
bancada sob o sólido alicerce da certeza de que o mundo estaria lá
fora, esperando-os, caso se desiludissem ou meramente se entediassem
com a comunidade.
Agora,
no entanto, era diferente, pois sabiam que tudo o que tinham era o
condomínio e seus vizinhos.
Em
torno de duas ou três dezenas de condôminos passaram a sentir
aquele vago desconforto que sentimos quando nos damos conta de que
não mais podemos contar com aquilo que já não utilizávamos, mas
que até então estivera ali, à disposição. Algo como o sentimento
que nutre a pessoa que somente percebe a intensidade do amor que
sentia após perder o ser amado.
Esse
grupo de inseguros, conversando entre si, concluiu que as coisas não
poderiam mais permanecer como eram antes. As circunstâncias haviam
mudado severamente. O condomínio já não mais tinha a proteção, a
segurança, do mundo organizado lá fora. Como saber se outras
pessoas, desorganizadas e famintas, não estariam à espreita,
querendo se apropriar dos alimentos e demais bens dos condôminos?
Reunidas,
dirigiram-se à Àgora e expuseram seus medos individuais. Tornaram
coletiva a sensação de insegurança. Sabiam que o inimigo era
imaginário, mas a mera possibilidade impeliu-os a agir.
A
comunidade resolveu, então, que seria organizada uma tropa de
segurança armada para proteção dos condôminos contra inimigos
externos. O condomínio, pacífico, não possuía armas, de modo que
algumas expedições ao mundo exterior foram organizadas para
angariar as armas e munições necessárias à formação da tropa.
Resolveram
que a tropa teria cem soldados voluntários, homens ou mulheres, e
adotaria o nome de Força Armada Contra Ataques ou, simplesmente,
FACA. A FACA teria o comando de um condômino eleito pelos demais.
Após
o devido treinamento, a FACA assumiu o controle da segurança do
condomínio.
Os
condôminos passaram a dormir mais tranquilos, sabiam que estavam sob
a proteção da FACA.
Meses
e meses se passaram sem que houvesse qualquer ataque. Ao que parecia,
não havia qualquer outro sobrevivente além dos moradores. Porém,
por extrema cautela, resolveram manter a FACA em atividade.
Logo
o comandante da FACA e seus soldados estavam enfadados com a inação.
Os condôminos perceberam que era uma inutilidade deixá-los
completamente sem ter o que fazer e tiveram uma ótima ideia. Como
ocasionalmente surgiam pequenos entreveros entre os moradores,
decidiram que a FACA cuidaria também da segurança interna, evitando
agressões entre os moradores. A ordem era para os soldados da FACA
impedirem as agressões e submeterem a divergência à assembleia da
Ágora.
E
assim foi.
O
fim do mundo trouxera um problema de abastecimento para o condomínio.
Alguns produtos não eram produzidos no condomínio, somente sendo
adquiridos no mercado lá fora. Expedições eram enviadas para
recolher mercadorias onde fossem encontradas, mas nem sempre eram.
O
desabastecimento desses produtos começou a gerar controvérsias
entre os moradores sobre quem teria direito a que produto. Papel
higiênico era disputadíssimo. Os conflitos se agudizaram. Passou a
ser difícil submeter todos os casos à Ágora, procedimento que
exigia a convocação de todos os moradores.
O
chefe da FACA, movido por boas intenções, solicitou que ele próprio
resolvesse esses pequenos problemas do cotidiano. Os cidadãos
entenderam que, em nome da segurança, não seria conveniente que
esses diversos pequenos problemas ficassem sem solução imediata.
Outorgaram à FACA o poder de resolvê-los imediatamente.
Em
vista disso, para reduzir os conflitos, o chefe da FACA passou a
controlar o abastecimento. Logo esse poder evoluiu para englobar
também os pequenos problemas envolvendo o trabalho realizado pelos
moradores, como a designação para a retirada do leite, a aragem da
terra, a semeadura, e todos os outros trabalhos que os moradores
deviam realizar.
A
intervenção da FACA não agradou alguns moradores, que se sentiram
incomodados pela intromissão em atividades que, até então, eram
realizadas prazerosa e livremente. Eles deixaram de trabalhar e
resolveram protestar junto ao Conselho Comunitário.
Na
audiência do Conselho, o chefe da FACA discursou dizendo que esses
moradores não estavam pensando no bem-estar da comunidade, que o que
eles queriam acabaria por levar o condomínio à ruína. Disse que as
regras foram estabelecidas como modo de organizar democraticamente os
trabalhos, assim segurando que todos tivessem o que comer e o que
beber. Temerosos de faltarem os suprimentos, o Conselho Comunitário
deliberou por julgar improcedente a queixa dos que reclamavam.
No
entanto, aproveitando-se da oportunidade, o chefe da FACA pediu que,
em nome da segurança coletiva, fosse criada uma lei lhe concedendo o
poder de determinar a prisão temporária de quem não acatasse as
determinações da Força. Segundo ele, isso evitaria que novos
insurgentes deixassem de trabalhar, prejudicando a comunidade.
-
É preciso lembrar, discursou, que nós não temos mais o mundo lá
fora nos aguardando caso algo dê errado aqui; a partir de agora se
algo der errado pagaremos com as nossas vidas e as vidas de nossos
filhos.
Convocou-se
uma assembleia na Ágora e, muito impressionados com os relatos dos
integrantes do Conselho Comunitário e com o discurso do próprio
chefe da FACA, sempre em nome da segurança de todos, os moradores
resolveram conceder o poder de prisão ao chefe da Força.
Tendo
consolidado em suas mãos o poder de dirigir o trabalho dos
moradores, o chefe da FACA considerou que seria mais interessante ele
organizar cada uma das atividades segundo critérios lógicos, pois
deixar cada um fazer o que gosta de fazer acabaria em caos e
desabastecimento. Distribuíram-se longas relações com as
atividades a serem realizadas e os nomes dos moradores que as fariam.
Um
dos moradores, que fazia o mesmo trabalho há dez anos, não gostou
de ter sido transferido para outro setor, e solicitou ao chefe da
FACA o retorno ao trabalho anterior. O chefe da FACA negou o pedido e
determinou que ele fizesse o que lhe fora destinado pela organização.
O morador negou-se e foi imediatamente preso.
A
esposa do morador, com seus dois filhos, foi protestar contra a
prisão do marido e acabou presa também.
A
notícia da prisão chegou ao Conselho Comunitário. Um dos
conselheiros, amigo do morador preso e sabendo que ele era um bom
homem e trabalhador exemplar, dirigiu-se ao chefe da FACA e exigiu,
como conselheiro que era, a libertação do morador. Foi
imediatamente preso, ficando na cela ao lado do morador.
O
Conselho Comunitário reuniu-se para deliberar sobre o assunto e
concluíram que o chefe da FACA estava se excedendo no poder que lhe
fora concedido. Baixou-se uma ordem retirando dele tais poderes. Um
dos conselheiros foi designado para entregar a ordem do Conselho. Mal
entregou a ordem, o pobre conselheiro também foi preso.
O
chefe da FACA reuniu dez homens armados e dirigiu-se ao Conselho
Comunitário. Lá chegando, discursou para os oito conselheiros
restantes sobre a importância do trabalho da FACA e sobre a
necessidade de alguém ser designado para decidir com rapidez sobre
os problemas da comunidade. Disse que todo a atenção da FACA era
dirigida à segurança e bem-estar da comunidade e que, nesse
sentido, todos aqueles que fossem contra o trabalho da FACA estavam,
na verdade, sendo inimigos do condomínio. Lembrou aos conselheiros
que seu poder fora concedido pela assembleia da Ágora e que eles,
conselheiros, não poderiam retirá-lo. Por fim, considerando que
eles haviam tentado retirar seu poder contra a determinação da
Ágora, tratava-se de um golpe contra a comunidade, de modo que
estavam todos presos e o Conselho Comunitário estava dissolvido, com
ele assumindo todas as funções do Conselho enquanto a Ágora não
decidisse de outra forma.
O
próprio chefe da FACA convocou uma assembleia na Ágora e, no dia,
mobilizou cinquenta homens armados e determinou que se posicionassem
em volta da praça a título de mera segurança.
Na
assembleia, ele discursou com veemência, conclamando todos a abrirem
os olhos para a nova situação mundial. Não havia mais suporte
protetor, não havia mais quem produzisse as coisas para os moradores
caso eles próprios assim não fizessem. Havia o perigo constante de
invasão por estranhos. Mais do que nunca, dizia ele, torna-se
necessário o fortalecimento da FACA para proteção de cada um de
nós. E prosseguiu falando por seis horas.
Ao
final, solicitou que todas as decisões da comunidade fossem
controladas por uma só pessoa, o que tornaria mais ágil o processo
decisório e deixaria a comunidade mais segura. Lembrou que, caso não
gostassem de sua gestão, bastaria convocar uma Ágora específica
para modificação do comando. Colocou o assunto em votação. Os
moradores, cercados por soldados armados, viram-se compelidos a
aprovar a nova ordem.
O
primeiro comando do chefe da FACA como líder absoluto foi determinar
que as assembleias gerais não eram mais necessárias, já que ele
poderia resolver as questões por si só. Um ou outro lembrou que,
sem as Ágoras, não seria possível removê-lo do poder, mas já era
tarde.
O
segundo comando foi expedir uma resolução determinando que nenhuma
ordem do comando da FACA poderia mais ser discutida. Na primeira
recalcitrância, prisão, na segunda, morte após determinação do
comando.
Uma
outra resolução determinou que era obrigação de todo morador
comunicar ao comando da FACA qualquer insatisfação demonstrada por
moradores. O descumprimento dessa obrigação geral de vigiar e punir
era a prisão. Em caso de reincidência, a morte após determinação
do comando.
Mais
uma resolução e foram proibidas as reuniões em locais públicos ou
privados com mais de dez pessoas. Comemorações deveriam ser
precedidas de autorização do comando da FACA.
Outra
resolução e ficou determinado que a FACA determinaria que produto e
que ração de alimentos cada pessoa teria direito.
As
resoluções foram se avolumando, invariavelmente prevendo penas de
prisão e de morte para os desobedientes.
Vários
moradores foram presos, outros mortos, tudo em nome da segurança
coletiva e do bem-estar social.
No
fim de dois anos, metade dos moradores estava morta, a outra metade
vivia como zumbis, de casa para o trabalho, do trabalho para casa.
Não existiam mais festas ou reuniões. Todos temiam todos. Alguns
denunciavam o comportamento antissocial do vizinho com o objetivo de
conseguir uma ração extra de alimento.
Aos
poucos, todavia, as mortes foram rareando na medida em que crescia o
conformismo e o medo.
Dez
anos depois, a FACA não matava mais quase ninguém, não era mais
necessário. Dois terços dos moradores havia perecido ante o poder
da FACA e o terço restante não mais resistia à ordem estabelecida.
A
redução da mão-de-obra impactou severamente a produção de
alimentos e todos eles viviam cortejando a fome, com exceção, é
claro, dos membros da FACA que, para dar proteção a todos,
precisavam estar bem alimentados.
O
sábio chefe da FACA expediu uma resolução obrigando os casais
férteis a terem, pelo menos, dois filhos. Hesitou, todavia, em
determinar a prisão ou morte dos que descumprissem a determinação.
Afinal, já eram poucos os trabalhadores. Resolveu puni-los com
redução da ração na proporção da demora em ter filhos. Tornou
os testes de fertilidade obrigatórios e proibiu o uso de meios
contraceptivos.
Vinte
anos se passaram e jamais houve qualquer tentativa de invasão do
condomínio por estranhos. Nunca souberam de nenhum sobrevivente além
deles.
Duas mil pessoas sobrevivera à catástrofe nuclear. Somente um terço delas havia sobrevivido
às regras de convivência estabelecidas por elas mesma. O condomínio agora, porém, estava em segurança.
A
segurança da FACA.
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