Um
dileto amigo pede as minhas considerações políticas sobre oito
assuntos. Como sou prolixo, o texto ficou um pouco longo, mas resolvi
compartilhar essa chatice com vocês. Afinal, é na hora da dor que
se revela o verdadeiro amigo. A partir de agora abro parênteses,
omitindo, é claro, o nome do amigo:
"Amigo,
você me conhece, não fujo de um debate político. Pena que nem
todos estejam, como você, abertos a uma discussão política. No
mais das vezes, não aceitam a opinião ou a crítica alheia, como se
crítica fosse outra coisa que não a exposição de uma opinião
caracterizada por ser contrária a uma outra. Tomam a coisa como
pessoal e, cheios de pruridos ególatras, devem imaginar a própria
opinião como imune a defeitos na formação do pensamento.
Acho
que, no fundo, ou deliram que o articulador da crítica os está
considerando pouco inteligentes ou, numa hipótese mais remota,
expuseram açodadamente um pensamento raso e, na hora da crítica,
percebem a inexistência de argumento apropriado para rebatê-la.
Nessa
última hipótese, ao invés da adorável virtude da humildade,
demonstram o reprovável vício do orgulho e da soberba, misturados
numa sopa de raiva incontida.
Então,
vamos lá, analisando cada um dos pontos que você me passou. Se você
não tiver muito tempo, leia aos poucos, mas peço que não deixe de
ler integralmente cada proposição, senão se perderá a linha de
raciocínio.
1
- Depois de tanto quebra-quebra, há um ano, os políticos continuam
com os mesmos discursos.
De
fato, o que parecia ser um renascimento dos movimentos populares nas
ruas, minguou. Creio que isso se deve a um fenômeno que não é
exclusivo do Brasil: o controle da opinião pública pela mídia
corporativa. Explico.
Não
resta dúvida de que a imprensa livre é um dos principais pilares da
democracia. Com ela, governos de inclinação despóticos acabam por
ser expostos ao controle popular. Mas, o que ocorre quando a imprensa
é dominada, em suas várias mídias (jornais, rádio, televisão,
revistas, livros, etc), por poucas empresas?
Simples:
a manipulação da pauta das discussões político-sociais. E o que é
isso?
Significa
um ambiente de ausência, justamente, de liberdade de imprensa e de
opinião. Êpa, como assim?
Isso
decorre do fato de que, se algumas poucas e grandes empresas são
donas de praticamente todos os canais de comunicação, elas não
contestarão as ações umas das outras, uma vez que todas possuem
interesses e temores similares, além de saber que uma briga
fratricida seria ruim para os negócios. Assim, não existirão
críticas recíprocas. Ou alguém já viu a revista Veja falando mal
da Globo? Ou a revista Época condenando a Folha de São Paulo? Pode
existir uma ou outra rusga, como entre a Record e a Globo, mas são
casos isolados e, no fundo, sem afetar coisas mais sérias.
O
caso é que as próprias empresas de mídia podem praticar atos
contrários aos interesses do povo, de modo que competiria a uma
imprensa verdadeiramente livre denunciá-los. Agora mesmo se sabe que
a Rede Globo está envolvida em um imenso escândalo fiscal. Quem
soube disso através dos principais jornais do país? Ninguém. As
poucas pessoas que possuem conhecimento da situação tomaram ciência
por via das mídias alternativas, as pequenas.
Assim,
se uma grande empresa de mídia não noticia fatos que possam
prejudicar as outras, e vice-versa, onde está a liberdade de
imprensa?
Outra
situação, bastante real: se são poucas as corporações midiáticas
de expressão e possuem elas um candidato a cargo público que
interessa aos seus negócios, que tipo de isenção nas notícias
você esperaria dessas empresas?
Então,
é possível imaginar o seguinte cenário: (a) quando um político
que representa os interesses da grande mídia corporativa está no
poder, os descalabros administrativos são escondidos ou suavizados,
(b) quando está no poder um político que contrarie esses
interesses, qualquer fato deve ser escandalizado em sua expressão
máxima.
Seria
isso que se esperaria de um ambiente de liberdade de imprensa?
Para
ficar num exemplo mais concreto: o falado crescimento da corrupção
no governo do PT. Será que é isso mesmo?
Bom,
somente ignorantes podem imaginar que não houve imensa corrupção
nos governos militares, quando obras gigantescas foram realizadas e
nada podia ser contestado. Transamazônica, ponte Rio-Niterói,
hidrelétrica de Itaipu, só para ficar nesses exemplos. Não rolou
nem um “cascalhinho”? Só sendo idiota para crer nisso.
O
fato é que nada podia ser investigado naqueles tempos sombrios. E
esse período de escuridão não acabou exatamente no mesmo tempo em
que se encerrou o ciclo militar. Embora o rigor não fosse de igual
intensidade, ele sobreviveu por um tempo e os governos Sarney,
Itamar, Collor e Fernando Henrique Cardoso ainda se aproveitaram dos
resquícios da censura e do temor reverencial que se dedicava ao
governo federal.
Foi
incorporado definitivamente ao folclore político nacional a
existência de um “Engavetador Geral da República” durante os
anos do PSDB no governo federal, com FHC. Como se sabe, tal
“engavetador” era o Procurador Geral da República daquela época,
Geraldo Brindeiro, que deixou de dar prosseguimento a mais de 4 mil
processos. Justamente ele, que deveria encaminhar os procedimentos
criminais por corrupção no âmbito do governo federal.
Durante
os oito anos do governo do PSDB, com FHC, a Polícia Federal
realizou, no total, apenas 28 operações contra a corrupção. Pois
bem, o que ocorreu a partir do governo do PT? É criada a
Controladoria Geral da União, aumenta-se muito o efetivo da Polícia
Federal, com valorização da carreira (leia-se: aumento salarial), e
exponencia-se o número de operações contra a corrupção,
contando-se, até o dia 19 do mês de maio de 2014, 2.203 operações
da Polícia Federal, ou seja, uma média de quase duzentas operações
por ano.
Não,
você não leu errado. Foram 28 operações da PF nos oitos anos do
governo tucano contra mais de duas mil no governo petista. Um
imbecil, é claro, vai creditar esse aumento ao um incremento na
própria corrupção em si. Os mais espertos vão perceber que o
aumento da fiscalização e da persecução criminal está
evidenciando os casos, ou seja, está havendo combate efetivo à
corrupção e isso cria o chamado "efeito percepção". Em
outras palavras, vê-se agora o que antes se escondia.
Nesse
panorama, demissões de servidores públicos corruptos, que eram
incomuns antes, tornaram-se uma rotina no governo do PT, com cerca de
quatrocentos deles sendo dispensados do serviço público todos os
anos no âmbito federal. Mas não é só isso. Políticos importantes
sendo processados, julgados e condenados, isso somente se viu no
governo do PT.
Novamente
o idiota pensa que é porque só no PT que tem político importante
corrupto. Não, a explicação mais adequada é que somente o PT
permitiu que tais processos fossem à frente. Não havia um
“engavetador geral” para impedir que a persecução criminal
prosseguisse.
Então,
tá, e o que isso tudo tem a ver com os protestos? Tudo.
Se
a imprensa não é livre, porque nas mãos de poucos, e se está
preocupada somente com os próprios interesses, não se engaja na
verdadeira luta que esse país necessita: a de reforma do sistema
político e de criação de uma Lei de Mídia. Tais questões
encontram-se extremamente imbricadas.
Não
haverá reforma política eficiente sem uma lei de mídia que
assegure a liberdade de imprensa e de opinião em sua verdadeira
expressão. Uma mesma mesma empresa ou grupo não pode dominar a
informação, sendo proprietária, ao mesmo tempo, das mídias
impressa, falada, televisada e internetizada.
Assim,
quando, após os protestos de um ano atrás, a Dilma propôs uma
constituinte exclusiva para a reforma do sistema político, a mídia,
sempre oposicionista, mancheteou que se tratava de um golpe que
objetivava perpetuar o PT no poder (tudo para a mídia é tentativa
de perpetuar o PT no poder, mas em São Paulo o PSDB está no governo
há mais de vinte anos e não se fala a mesma coisa).
Não
é nada disso, óbvio. O fato é que esse sistema político que aí
está interessa à mídia, pois é através dele que seus
representantes foram, são e continuarão a ser eleitos.
É
claro como o sol que o congresso atual, composto por políticos
eleitos por esse sistema podre, não terá isenção nenhuma para
propor uma reforma política de profundidade, que traga algo mais
próximo da verdadeira democracia para a realidade. Afinal, se mudar,
como eles serão eleitos?
Enfim,
os movimentos populares do ano passado não repercutiram porque a
mídia tratou de silenciá-los e tratou de manietar o congresso para
evitar qualquer mudança na atual estrutura.
Neste
momento, por exemplo, alguns protestantes estão sendo tratados pela
mídia, de forma rasa, sem aprofundamento de análise, como
terroristas, como vândalos e etc. Tais prisões, que atentam contra
a liberdade de manifestação, certamente possuem a intenção de
incutir medo na população. “Ó, toma cuidado, hein, a gente
inventa que você tava com um artefato explosivo na sua mochila e te
ferramos. Fica em casa que é melhor para você”.
Quanto
ao fato do discurso político permanecer o mesmo, sempre foi assim e
sempre será. Quem pode mudar esse discurso é o povo, através do
voto e através de manifestações.
2
- O clã dos Sarney está se retirando da política.
Bom,
não creio que toda a família Sarney irá se retirar da política.
Até onde sei serão o Sarney senior e a filha, a Roseana. Quanto a
isso, só tenho uma coisa a dizer e um pedido a fazer: já vão
tarde, não voltem.
3
- Há uma relação próxima do governo brasileiro com Cuba.
O
governo brasileiro possui a obrigação de manter relação próxima
com todos os países da América Latina. A China é comunista, possui
bilhões de miseráveis, pessoas são presas sem justificativa e
quase todos os países do mundo, inclusive o Brasil, mantém
relacionamento diplomático regular com ela. O mesmo se poderia dizer
de países tirânicos, como a Arábia Saudita, cujo petróleo faz
todos se esquecerem do que ocorre lá dentro. Por que com Cuba seria
diferente? Só porque é pobre?
Ademais,
o fato de Cuba ser comunista não é um fator que tenha implicações
somente negativas, como a falta de democracia. Existem elementos
positivos a serem considerados, como a universalização da educação
e da saúde. Existe um indicador da ONU, que avalia a felicidade
geral da população, no qual Cuba aparece em excelente colocação.
Enfim,
como todos os países, Cuba possui qualidades e defeitos. Eu não
moraria lá, mas também não moraria nos Estados Unidos, na China,
em Israel, na Arábia Saudita ou em qualquer país teocrático.
4
- A elite branca, como diz o Lula, persegue o PT.
Ele
poderia ter dito somente “a elite”, pois a elite nesse país é
branca, o que por si é um indicativo de nossa desigualdade social e
racial (os conceitos se misturam, pois o pobre no Brasil em geral é
preto). Como a tal da elite é proprietária das corporações
midiáticas, e dado o que já escrevi acima, acho que ele possui
razão em suas queixas.
5
- As empresas estrangeiras estão saindo do país.
A
informação não procede. Mais e mais empresas estão vindo para o
Brasil ou aumentando seus investimentos aqui. Veja, por exemplo,
nesses links:
2011:
2013:
(veja,
houve queda em 2013, mas o Brasil foi o quinto destino dos
investimentos internacionais e essa foi a primeira queda desde 2009.
Isso não significa empresas saindo do país).
2014:
6
- Em tudo que envolve políticos, há corrupção.
Isso
é um fato e não é característico apenas do Brasil. O que
precisamos é de rigor nos mecanismos de controle. Como já dito
acima, tais mecanismos foram ampliados nos governos petistas, tanto
que o número de operações da PF, de processos criminais, de
prisões e de demissões aumentou de forma considerável. Essa luta
jamais terminará, em lugar nenhum do mundo.
7
- Aposentaram o Joaquim Barbosa.
Pelo
que sei, ele se aposentou. É acreditar nisso ou supor que ele é um
covarde que não merece a atenção que a mídia e parte considerável
do povo lhe dispensa. Imagine se todo delegado, promotor ou juiz que
recebesse ameaças pedisse aposentadoria ou demissão.
A
verdade é que ele sempre teve dificuldades em trabalhar no Supremo,
segundo ele por conta de sério problema na coluna. Ele é (ou era) o
ministro com o maior número de processos em atraso no Supremo, mais
de dezessete mil. Todos ficarão para o sucessor.
Só
para ter uma ideia, na mesma época o Gilmar Mendes tinha cerca de
dois mil e setecentos em atraso, ou seja, seis vezes menos que o
Barbosão. A aposentadoria o livrou desse trabalho ou desse vexame.
Tenho
severas restrições ao Joaquim Barbosa, por conta de suas
tendências autoritárias quando no exercício do poder, mas não
irei aqui me estender.
8
- Existem militares incomodados com a Comissão da Verdade.
E
deveriam mesmo, embora não tenham razão para isso. Enquanto a
Argentina, o Chile e até o Paraguai (vejam só) passaram, ou
tentaram passar, a limpo a suas ditaduras militares, o Brasil jamais
iniciou um processo criminal decente contra qualquer militar. E
aparentemente não irá fazê-lo.
Amigo,
espero ter contribuído de alguma forma para o debate. Caso seja de
seu interesse, você está autorizado a divulgar.
Abração.
Marcio".
Nenhum comentário :
Postar um comentário