quarta-feira, 30 de julho de 2014

Questões políticas

Um dileto amigo pede as minhas considerações políticas sobre oito assuntos. Como sou prolixo, o texto ficou um pouco longo, mas resolvi compartilhar essa chatice com vocês. Afinal, é na hora da dor que se revela o verdadeiro amigo. A partir de agora abro parênteses, omitindo, é claro, o nome do amigo:
"Amigo, você me conhece, não fujo de um debate político. Pena que nem todos estejam, como você, abertos a uma discussão política. No mais das vezes, não aceitam a opinião ou a crítica alheia, como se crítica fosse outra coisa que não a exposição de uma opinião caracterizada por ser contrária a uma outra. Tomam a coisa como pessoal e, cheios de pruridos ególatras, devem imaginar a própria opinião como imune a defeitos na formação do pensamento.

Acho que, no fundo, ou deliram que o articulador da crítica os está considerando pouco inteligentes ou, numa hipótese mais remota, expuseram açodadamente um pensamento raso e, na hora da crítica, percebem a inexistência de argumento apropriado para rebatê-la.
Nessa última hipótese, ao invés da adorável virtude da humildade, demonstram o reprovável vício do orgulho e da soberba, misturados numa sopa de raiva incontida.
Então, vamos lá, analisando cada um dos pontos que você me passou. Se você não tiver muito tempo, leia aos poucos, mas peço que não deixe de ler integralmente cada proposição, senão se perderá a linha de raciocínio.
1 - Depois de tanto quebra-quebra, há um ano, os políticos continuam com os mesmos discursos.
De fato, o que parecia ser um renascimento dos movimentos populares nas ruas, minguou. Creio que isso se deve a um fenômeno que não é exclusivo do Brasil: o controle da opinião pública pela mídia corporativa. Explico.
Não resta dúvida de que a imprensa livre é um dos principais pilares da democracia. Com ela, governos de inclinação despóticos acabam por ser expostos ao controle popular. Mas, o que ocorre quando a imprensa é dominada, em suas várias mídias (jornais, rádio, televisão, revistas, livros, etc), por poucas empresas?
Simples: a manipulação da pauta das discussões político-sociais. E o que é isso?
Significa um ambiente de ausência, justamente, de liberdade de imprensa e de opinião. Êpa, como assim?
Isso decorre do fato de que, se algumas poucas e grandes empresas são donas de praticamente todos os canais de comunicação, elas não contestarão as ações umas das outras, uma vez que todas possuem interesses e temores similares, além de saber que uma briga fratricida seria ruim para os negócios. Assim, não existirão críticas recíprocas. Ou alguém já viu a revista Veja falando mal da Globo? Ou a revista Época condenando a Folha de São Paulo? Pode existir uma ou outra rusga, como entre a Record e a Globo, mas são casos isolados e, no fundo, sem afetar coisas mais sérias.
O caso é que as próprias empresas de mídia podem praticar atos contrários aos interesses do povo, de modo que competiria a uma imprensa verdadeiramente livre denunciá-los. Agora mesmo se sabe que a Rede Globo está envolvida em um imenso escândalo fiscal. Quem soube disso através dos principais jornais do país? Ninguém. As poucas pessoas que possuem conhecimento da situação tomaram ciência por via das mídias alternativas, as pequenas.
Assim, se uma grande empresa de mídia não noticia fatos que possam prejudicar as outras, e vice-versa, onde está a liberdade de imprensa?
Outra situação, bastante real: se são poucas as corporações midiáticas de expressão e possuem elas um candidato a cargo público que interessa aos seus negócios, que tipo de isenção nas notícias você esperaria dessas empresas?
Então, é possível imaginar o seguinte cenário: (a) quando um político que representa os interesses da grande mídia corporativa está no poder, os descalabros administrativos são escondidos ou suavizados, (b) quando está no poder um político que contrarie esses interesses, qualquer fato deve ser escandalizado em sua expressão máxima.
Seria isso que se esperaria de um ambiente de liberdade de imprensa?
Para ficar num exemplo mais concreto: o falado crescimento da corrupção no governo do PT. Será que é isso mesmo?
Bom, somente ignorantes podem imaginar que não houve imensa corrupção nos governos militares, quando obras gigantescas foram realizadas e nada podia ser contestado. Transamazônica, ponte Rio-Niterói, hidrelétrica de Itaipu, só para ficar nesses exemplos. Não rolou nem um “cascalhinho”? Só sendo idiota para crer nisso.
O fato é que nada podia ser investigado naqueles tempos sombrios. E esse período de escuridão não acabou exatamente no mesmo tempo em que se encerrou o ciclo militar. Embora o rigor não fosse de igual intensidade, ele sobreviveu por um tempo e os governos Sarney, Itamar, Collor e Fernando Henrique Cardoso ainda se aproveitaram dos resquícios da censura e do temor reverencial que se dedicava ao governo federal.
Foi incorporado definitivamente ao folclore político nacional a existência de um “Engavetador Geral da República” durante os anos do PSDB no governo federal, com FHC. Como se sabe, tal “engavetador” era o Procurador Geral da República daquela época, Geraldo Brindeiro, que deixou de dar prosseguimento a mais de 4 mil processos. Justamente ele, que deveria encaminhar os procedimentos criminais por corrupção no âmbito do governo federal.
Durante os oito anos do governo do PSDB, com FHC, a Polícia Federal realizou, no total, apenas 28 operações contra a corrupção. Pois bem, o que ocorreu a partir do governo do PT? É criada a Controladoria Geral da União, aumenta-se muito o efetivo da Polícia Federal, com valorização da carreira (leia-se: aumento salarial), e exponencia-se o número de operações contra a corrupção, contando-se, até o dia 19 do mês de maio de 2014, 2.203 operações da Polícia Federal, ou seja, uma média de quase duzentas operações por ano.
Não, você não leu errado. Foram 28 operações da PF nos oitos anos do governo tucano contra mais de duas mil no governo petista. Um imbecil, é claro, vai creditar esse aumento ao um incremento na própria corrupção em si. Os mais espertos vão perceber que o aumento da fiscalização e da persecução criminal está evidenciando os casos, ou seja, está havendo combate efetivo à corrupção e isso cria o chamado "efeito percepção". Em outras palavras, vê-se agora o que antes se escondia.
Nesse panorama, demissões de servidores públicos corruptos, que eram incomuns antes, tornaram-se uma rotina no governo do PT, com cerca de quatrocentos deles sendo dispensados do serviço público todos os anos no âmbito federal. Mas não é só isso. Políticos importantes sendo processados, julgados e condenados, isso somente se viu no governo do PT.
Novamente o idiota pensa que é porque só no PT que tem político importante corrupto. Não, a explicação mais adequada é que somente o PT permitiu que tais processos fossem à frente. Não havia um “engavetador geral” para impedir que a persecução criminal prosseguisse.
Então, tá, e o que isso tudo tem a ver com os protestos? Tudo.
Se a imprensa não é livre, porque nas mãos de poucos, e se está preocupada somente com os próprios interesses, não se engaja na verdadeira luta que esse país necessita: a de reforma do sistema político e de criação de uma Lei de Mídia. Tais questões encontram-se extremamente imbricadas.
Não haverá reforma política eficiente sem uma lei de mídia que assegure a liberdade de imprensa e de opinião em sua verdadeira expressão. Uma mesma mesma empresa ou grupo não pode dominar a informação, sendo proprietária, ao mesmo tempo, das mídias impressa, falada, televisada e internetizada.
Assim, quando, após os protestos de um ano atrás, a Dilma propôs uma constituinte exclusiva para a reforma do sistema político, a mídia, sempre oposicionista, mancheteou que se tratava de um golpe que objetivava perpetuar o PT no poder (tudo para a mídia é tentativa de perpetuar o PT no poder, mas em São Paulo o PSDB está no governo há mais de vinte anos e não se fala a mesma coisa).
Não é nada disso, óbvio. O fato é que esse sistema político que aí está interessa à mídia, pois é através dele que seus representantes foram, são e continuarão a ser eleitos.
É claro como o sol que o congresso atual, composto por políticos eleitos por esse sistema podre, não terá isenção nenhuma para propor uma reforma política de profundidade, que traga algo mais próximo da verdadeira democracia para a realidade. Afinal, se mudar, como eles serão eleitos?
Enfim, os movimentos populares do ano passado não repercutiram porque a mídia tratou de silenciá-los e tratou de manietar o congresso para evitar qualquer mudança na atual estrutura.
Neste momento, por exemplo, alguns protestantes estão sendo tratados pela mídia, de forma rasa, sem aprofundamento de análise, como terroristas, como vândalos e etc. Tais prisões, que atentam contra a liberdade de manifestação, certamente possuem a intenção de incutir medo na população. “Ó, toma cuidado, hein, a gente inventa que você tava com um artefato explosivo na sua mochila e te ferramos. Fica em casa que é melhor para você”.
Quanto ao fato do discurso político permanecer o mesmo, sempre foi assim e sempre será. Quem pode mudar esse discurso é o povo, através do voto e através de manifestações.
2 - O clã dos Sarney está se retirando da política.
Bom, não creio que toda a família Sarney irá se retirar da política. Até onde sei serão o Sarney senior e a filha, a Roseana. Quanto a isso, só tenho uma coisa a dizer e um pedido a fazer: já vão tarde, não voltem.
3 - Há uma relação próxima do governo brasileiro com Cuba.
O governo brasileiro possui a obrigação de manter relação próxima com todos os países da América Latina. A China é comunista, possui bilhões de miseráveis, pessoas são presas sem justificativa e quase todos os países do mundo, inclusive o Brasil, mantém relacionamento diplomático regular com ela. O mesmo se poderia dizer de países tirânicos, como a Arábia Saudita, cujo petróleo faz todos se esquecerem do que ocorre lá dentro. Por que com Cuba seria diferente? Só porque é pobre?
Ademais, o fato de Cuba ser comunista não é um fator que tenha implicações somente negativas, como a falta de democracia. Existem elementos positivos a serem considerados, como a universalização da educação e da saúde. Existe um indicador da ONU, que avalia a felicidade geral da população, no qual Cuba aparece em excelente colocação.
Enfim, como todos os países, Cuba possui qualidades e defeitos. Eu não moraria lá, mas também não moraria nos Estados Unidos, na China, em Israel, na Arábia Saudita ou em qualquer país teocrático.
4 - A elite branca, como diz o Lula, persegue o PT.
Ele poderia ter dito somente “a elite”, pois a elite nesse país é branca, o que por si é um indicativo de nossa desigualdade social e racial (os conceitos se misturam, pois o pobre no Brasil em geral é preto). Como a tal da elite é proprietária das corporações midiáticas, e dado o que já escrevi acima, acho que ele possui razão em suas queixas.
5 - As empresas estrangeiras estão saindo do país.
A informação não procede. Mais e mais empresas estão vindo para o Brasil ou aumentando seus investimentos aqui. Veja, por exemplo, nesses links:
2011:
2013:
(veja, houve queda em 2013, mas o Brasil foi o quinto destino dos investimentos internacionais e essa foi a primeira queda desde 2009. Isso não significa empresas saindo do país).
2014:
6 - Em tudo que envolve políticos, há corrupção.
Isso é um fato e não é característico apenas do Brasil. O que precisamos é de rigor nos mecanismos de controle. Como já dito acima, tais mecanismos foram ampliados nos governos petistas, tanto que o número de operações da PF, de processos criminais, de prisões e de demissões aumentou de forma considerável. Essa luta jamais terminará, em lugar nenhum do mundo.
7 - Aposentaram o Joaquim Barbosa.
Pelo que sei, ele se aposentou. É acreditar nisso ou supor que ele é um covarde que não merece a atenção que a mídia e parte considerável do povo lhe dispensa. Imagine se todo delegado, promotor ou juiz que recebesse ameaças pedisse aposentadoria ou demissão.
A verdade é que ele sempre teve dificuldades em trabalhar no Supremo, segundo ele por conta de sério problema na coluna. Ele é (ou era) o ministro com o maior número de processos em atraso no Supremo, mais de dezessete mil. Todos ficarão para o sucessor.
Só para ter uma ideia, na mesma época o Gilmar Mendes tinha cerca de dois mil e setecentos em atraso, ou seja, seis vezes menos que o Barbosão. A aposentadoria o livrou desse trabalho ou desse vexame.
Tenho severas restrições ao Joaquim Barbosa, por conta de suas tendências autoritárias quando no exercício do poder, mas não irei aqui me estender.
8 - Existem militares incomodados com a Comissão da Verdade.
E deveriam mesmo, embora não tenham razão para isso. Enquanto a Argentina, o Chile e até o Paraguai (vejam só) passaram, ou tentaram passar, a limpo a suas ditaduras militares, o Brasil jamais iniciou um processo criminal decente contra qualquer militar. E aparentemente não irá fazê-lo.
Amigo, espero ter contribuído de alguma forma para o debate. Caso seja de seu interesse, você está autorizado a divulgar.

Abração. Marcio".

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