Caros
vizinhos, bom dia. Meu nome é Marcio e minha esposa se chama
Luciana. Nossa família, nós e mais duas filhas, estamos residindo
aqui nessa rua há pouco mais de um ano.
Conversando
com minha esposa, estranhávamos o fato de, pela primeira vez em
vinte anos, não sabermos o nome de qualquer vizinho depois de um ano
morando no mesmo lugar.
Costumamos
brincar nos chamando de ciganos, pois já moramos em oito endereços
diferentes nos últimos dezessete anos. Em todos esses lugares,
fizemos ao menos uma amizade. Mas não aqui, até agora. É pena pois
gostamos muito desse lugar. Talvez seja mesmo o local de que mais
gostamos. Contudo, nos ressentimos da falta de amizade entre os
vizinhos. Não há descortesia, é claro, mas tampouco qualquer
contato.
Posso
dizer que sei, fisionomicamente, quem são o vizinho da frente, um
casal muito simpático, o vizinho do meu lado direito, o vizinho do
meu lado esquerdo, que é pastor, os vizinhos do final da rua, que
são os únicos com quem minha família possui algum contato, o
vizinho mais pra frente, também muito simpático, que possui dois
boxers e está sempre andando com seu triciclo na praia. Seus nomes?
Com tristeza informo que não sei.
Alguém
já disse que conhecer os vizinhos, mais do que um saudável convívio
social, é um fator de segurança para os moradores da rua. Lógico,
se a gente se conhece ao menos fisionomicamente, qualquer estranho é
percebido de imediato.
Seria
legal se existisse amizade entre os vizinhos, inclusive com
comemorações conjuntas de certas datas, festa junina comunitária
ou algo assim. Mas, na falta disso, o mínimo aceitável é conhecer
o rosto do vizinho, poder identificá-lo na multidão. Estou em falta
nessa parte, reconheço. Não identifico a maior parte da vizinhança.
Peço desculpas.
Este
final de ano, porém, trouxe-me duas alegrias da parte de meus
vizinhos. O primeiro foi o recebimento de um cartão de natal dos
vizinhos que moram mais à frente, é possível que vocês também o
tenham recebido. Em seu cartão, eles falavam justamente sobre isso,
sobre a falta de contato entre os vizinhos. Taí um exemplo de
tentativa de estabelecer uma boa relação. Ninguém precisa ser
amigo, mas podemos ser cordiais uns com os outros. E cordial (a
palavra possui etimologia em coração) significa também tolerância.
Ficamos tão contentes, eu e minha esposa, que pegamos um cartão
para devolver a gentileza. Mas antes que o escrevêssemos,
encontramos o casal na rua e resolvemos agradecer pessoalmente o mimo
de natal que eles nos mandaram. Algo tão prosaico – um cartão de
natal – e, no entanto, tão inusitado após mais de um ano morando
na rua.
O
segundo ato que nos tocou partiu do vizinho do meu lado esquerdo, um
pastor protestante, cujo nome ainda não sei. Então o chamarei
assim, por enquanto, pastor. Espero em breve saber seu nome.
Pois
bem, no último dia do ano, o pastor chamou-me ao portão de minha
casa. Nossa, fui ao portão imensamente feliz. Achei que o pastor
estava ali para celebrar essa data tão importante, o réveillon. A
gente nunca havia se falado antes!
Realmente,
logo no início desejou-me o pastor um feliz ano novo. Fiquei muito
contente e, com um sorriso enorme no rosto, desejei-lhe o mesmo, para
ele e para sua família. O pastor, porém, meio sem jeito tadinho,
disse-me que não estava ali por isso, mas para me pedir que um
convidado meu retirasse o veículo que estacionara em sua calçada
gramada. Caramba! Fiquei muito sem graça. Realmente alguém parara o
carro em cima da grama do vizinho. Então, pedi à minha convidada
que estacionasse em outro local. Minha convidada retirou o carro e
estacionou em outro lugar, mais apropriado. Ainda mais sem jeito eu
fiquei, pois percebi que o pastor é um homem ordeiro, enquanto sou
um bagunceiro. Logo eu, servidor do poder judiciário, que tem a
obrigação de zelar pelo cumprimento da lei. Ai, que vergonha do meu
vizinho!
Lembrei-me,
então que, após mais de um ano morando aqui, todas as vezes em que
havia culto na casa do pastor, e isso ocorre todas as terças,
quintas e domingos, alguma ovelha do rebanho do pastor parava o carro
justamente em cima DA MINHA CALÇADA GRAMADA! Todas as vezes, sem
exceção! E eu nunca fui lá tocar a sua campainha para alertá-lo
desta tão grave falta! Que vexame! O que será que o pastor deve
pensar de mim?
Bom,
aproveito a oportunidade para desculpar-me publicamente. E a partir
de agora, toda vez que algum convidado do pastor parar em cima da
minha grama, irei imediatamente alertá-lo sobre a falta. Espero que
o convidado dele seja tão gentil quanto a minha foi.
Aliás,
até então não entendia porque o vizinho que mora em frente ao
pastor colocava dois tijolos de concreto defronte ao seu portão para
impedir que veículos aproveitassem o seu recuo de garagem para
manobrar. Pensava que era implicância. Quanta ingenuidade. Agora
percebo que ele conhece esse espírito ordeiro do pastor e os tijolos
eram para impedir que alguma ovelha desordenada parasse o carro em
frente à sua garagem.
E
vou além, a partir desse momento, em que tomo conhecimento dessa
faceta ética do pastor, passarei a não mais permitir que os cultos
ultrapassem as 22 horas, que todos sabemos ser a hora limite da lei
do silêncio. E os cultos muitas vezes ultrapassam esse horário,
algumas vezes chegando à meia-noite. O pastor, coitado, tomado pela
fé, talvez até em êxtase espiritual em algumas ocasiões, ocupado
em tomar conta de seu rebanho, não percebe o passar das horas e, sem
querer, viola a lei.
E
que fé é essa, meu bom Jesus! Os gritos que os participantes do
culto emitem, e sempre os emitem, são testemunhas desse louvor
intenso. Como não sou praticante de religião, demorei a perceber
essa realidade divina: Deus é surdo, gente! Há que gritar para ele
atender nossas preces. Não basta a oração penitente, silenciosa e
plena de fé. Temos que berrar. Pensando bem, há uma certa lógica
nisso. Deus mora no céu e o céu é bem distante, daí a necessidade
de gritar bem alto. Se bem que o céu está mais distante de uns do
que de outros. Obrigado, pastor, por mais essa lição. Quanto aos
estrondosos balidos das ovelhas, isso é com o bondoso pastor. Mas o
horário, ah, disso eu tomarei conta a partir de agora. Tudo em nome
da boa vizinhança.
Aliás,
será que o pastor possui alvará de funcionamento? Poxa, a rua onde
moro é estritamente residencial. Com exceção da escola para
pessoas deficientes, que é silenciosa e não funciona em finais de
semana, somente pessoas físicas estão aqui estabelecidas. Talvez o
pastor não saiba, mas o local pode ser inapropriado. Existe essa
coisa de zoneamento urbano, que determina onde as entidades podem se
estabelecer. Mas, como eu o vizinho pastor estamos iniciando essa
nova relação de, hum..., proximidade, farei isso por ele.
Procurarei saber quais são os critérios legais que definem a
atividade religiosa e os seus limites. Se alguém quiser me ajudar,
agradeço.
Estou
tão contente. Finalmente estamos começando a estabelecer alguma
relação com a vizinhança. Espero que seja produtiva. Porém, se
não for, fazer o que, né? Nós somos ciganos, a gente se muda e
tenta outra vez.
Desejo
a todos vocês, vizinhos, um feliz ano novo, com muita cordialidade
(coração), urbanidade e tolerância entre nós (na medida da
reciprocidade).
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