sábado, 23 de outubro de 2010

Carta para os meus vizinhos



Caros vizinhos, bom dia. Meu nome é Marcio e minha esposa se chama Luciana. Nossa família, nós e mais duas filhas, estamos residindo aqui nessa rua há pouco mais de um ano.
Conversando com minha esposa, estranhávamos o fato de, pela primeira vez em vinte anos, não sabermos o nome de qualquer vizinho depois de um ano morando no mesmo lugar.
Costumamos brincar nos chamando de ciganos, pois já moramos em oito endereços diferentes nos últimos dezessete anos. Em todos esses lugares, fizemos ao menos uma amizade. Mas não aqui, até agora. É pena pois gostamos muito desse lugar. Talvez seja mesmo o local de que mais gostamos. Contudo, nos ressentimos da falta de amizade entre os vizinhos. Não há descortesia, é claro, mas tampouco qualquer contato.

Posso dizer que sei, fisionomicamente, quem são o vizinho da frente, um casal muito simpático, o vizinho do meu lado direito, o vizinho do meu lado esquerdo, que é pastor, os vizinhos do final da rua, que são os únicos com quem minha família possui algum contato, o vizinho mais pra frente, também muito simpático, que possui dois boxers e está sempre andando com seu triciclo na praia. Seus nomes? Com tristeza informo que não sei.
Alguém já disse que conhecer os vizinhos, mais do que um saudável convívio social, é um fator de segurança para os moradores da rua. Lógico, se a gente se conhece ao menos fisionomicamente, qualquer estranho é percebido de imediato.
Seria legal se existisse amizade entre os vizinhos, inclusive com comemorações conjuntas de certas datas, festa junina comunitária ou algo assim. Mas, na falta disso, o mínimo aceitável é conhecer o rosto do vizinho, poder identificá-lo na multidão. Estou em falta nessa parte, reconheço. Não identifico a maior parte da vizinhança. Peço desculpas.
Este final de ano, porém, trouxe-me duas alegrias da parte de meus vizinhos. O primeiro foi o recebimento de um cartão de natal dos vizinhos que moram mais à frente, é possível que vocês também o tenham recebido. Em seu cartão, eles falavam justamente sobre isso, sobre a falta de contato entre os vizinhos. Taí um exemplo de tentativa de estabelecer uma boa relação. Ninguém precisa ser amigo, mas podemos ser cordiais uns com os outros. E cordial (a palavra possui etimologia em coração) significa também tolerância. Ficamos tão contentes, eu e minha esposa, que pegamos um cartão para devolver a gentileza. Mas antes que o escrevêssemos, encontramos o casal na rua e resolvemos agradecer pessoalmente o mimo de natal que eles nos mandaram. Algo tão prosaico – um cartão de natal – e, no entanto, tão inusitado após mais de um ano morando na rua.
O segundo ato que nos tocou partiu do vizinho do meu lado esquerdo, um pastor protestante, cujo nome ainda não sei. Então o chamarei assim, por enquanto, pastor. Espero em breve saber seu nome.
Pois bem, no último dia do ano, o pastor chamou-me ao portão de minha casa. Nossa, fui ao portão imensamente feliz. Achei que o pastor estava ali para celebrar essa data tão importante, o réveillon. A gente nunca havia se falado antes!
Realmente, logo no início desejou-me o pastor um feliz ano novo. Fiquei muito contente e, com um sorriso enorme no rosto, desejei-lhe o mesmo, para ele e para sua família. O pastor, porém, meio sem jeito tadinho, disse-me que não estava ali por isso, mas para me pedir que um convidado meu retirasse o veículo que estacionara em sua calçada gramada. Caramba! Fiquei muito sem graça. Realmente alguém parara o carro em cima da grama do vizinho. Então, pedi à minha convidada que estacionasse em outro local. Minha convidada retirou o carro e estacionou em outro lugar, mais apropriado. Ainda mais sem jeito eu fiquei, pois percebi que o pastor é um homem ordeiro, enquanto sou um bagunceiro. Logo eu, servidor do poder judiciário, que tem a obrigação de zelar pelo cumprimento da lei. Ai, que vergonha do meu vizinho!
Lembrei-me, então que, após mais de um ano morando aqui, todas as vezes em que havia culto na casa do pastor, e isso ocorre todas as terças, quintas e domingos, alguma ovelha do rebanho do pastor parava o carro justamente em cima DA MINHA CALÇADA GRAMADA! Todas as vezes, sem exceção! E eu nunca fui lá tocar a sua campainha para alertá-lo desta tão grave falta! Que vexame! O que será que o pastor deve pensar de mim?
Bom, aproveito a oportunidade para desculpar-me publicamente. E a partir de agora, toda vez que algum convidado do pastor parar em cima da minha grama, irei imediatamente alertá-lo sobre a falta. Espero que o convidado dele seja tão gentil quanto a minha foi.
Aliás, até então não entendia porque o vizinho que mora em frente ao pastor colocava dois tijolos de concreto defronte ao seu portão para impedir que veículos aproveitassem o seu recuo de garagem para manobrar. Pensava que era implicância. Quanta ingenuidade. Agora percebo que ele conhece esse espírito ordeiro do pastor e os tijolos eram para impedir que alguma ovelha desordenada parasse o carro em frente à sua garagem.
E vou além, a partir desse momento, em que tomo conhecimento dessa faceta ética do pastor, passarei a não mais permitir que os cultos ultrapassem as 22 horas, que todos sabemos ser a hora limite da lei do silêncio. E os cultos muitas vezes ultrapassam esse horário, algumas vezes chegando à meia-noite. O pastor, coitado, tomado pela fé, talvez até em êxtase espiritual em algumas ocasiões, ocupado em tomar conta de seu rebanho, não percebe o passar das horas e, sem querer, viola a lei.
E que fé é essa, meu bom Jesus! Os gritos que os participantes do culto emitem, e sempre os emitem, são testemunhas desse louvor intenso. Como não sou praticante de religião, demorei a perceber essa realidade divina: Deus é surdo, gente! Há que gritar para ele atender nossas preces. Não basta a oração penitente, silenciosa e plena de fé. Temos que berrar. Pensando bem, há uma certa lógica nisso. Deus mora no céu e o céu é bem distante, daí a necessidade de gritar bem alto. Se bem que o céu está mais distante de uns do que de outros. Obrigado, pastor, por mais essa lição. Quanto aos estrondosos balidos das ovelhas, isso é com o bondoso pastor. Mas o horário, ah, disso eu tomarei conta a partir de agora. Tudo em nome da boa vizinhança.
Aliás, será que o pastor possui alvará de funcionamento? Poxa, a rua onde moro é estritamente residencial. Com exceção da escola para pessoas deficientes, que é silenciosa e não funciona em finais de semana, somente pessoas físicas estão aqui estabelecidas. Talvez o pastor não saiba, mas o local pode ser inapropriado. Existe essa coisa de zoneamento urbano, que determina onde as entidades podem se estabelecer. Mas, como eu o vizinho pastor estamos iniciando essa nova relação de, hum..., proximidade, farei isso por ele. Procurarei saber quais são os critérios legais que definem a atividade religiosa e os seus limites. Se alguém quiser me ajudar, agradeço.
Estou tão contente. Finalmente estamos começando a estabelecer alguma relação com a vizinhança. Espero que seja produtiva. Porém, se não for, fazer o que, né? Nós somos ciganos, a gente se muda e tenta outra vez.

Desejo a todos vocês, vizinhos, um feliz ano novo, com muita cordialidade (coração), urbanidade e tolerância entre nós (na medida da reciprocidade).

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