sexta-feira, 28 de junho de 2013

Bolsa Família enfraquece o coronelismo

Encontra-se em andamento uma campanha pelo fim do voto das pessoas que recebem o bolsa-família. Para quem pensava já ter visto de tudo em termos de radicalização política, ausência de sensibilidade social e preconceito social, ei aí um exemplo da criatividade humana em matéria de reduzir a importância do outro.
Interessante observar que, nas redes sociais, as pessoas atiram-se ao hábito, inclusive enfadonho para os receptores, de enviar mensagens de amor, de solidariedade, de fraternidade, de paz e de sensibilidade. São incontáveis, praticamente infinitas, mensagens de fundo religioso, cheias de compaixão e ternura. Uma beleza de mundo esse, o mundo das mensagens das redes sociais.
Um extraterrestre que pretendesse conhecer a natureza da humanidade somente através da interceptação das mensagens e informações que navegam através das redes sociais, sem possibilidade de contato imediato com a realidade, lendo essas mensagens chegaria à conclusão inequívoca de que os humanos são seres praticamente perfeitos, uma espécie pacífica ancorada solidamente em princípios de serenidade e altruísmo. Certamente ficaria maravilhado com o mundo humano, uma gigantesca irmandade. Dificilmente o próprio mundo do extraterrestre seria igualável ao dos humanos, muito superior em grandiosidade de espírito.

Todavia, para utilizar uma expressão comum dos jovens, SQN (só que não). Lastimavelmente, é tudo ilusão, falsidade e hipocrisia. Uma pena.
Sequer há necessidade de adentrar na crítica das idiossincrasias fáticas do mundo real, palpável, no qual bilhões de seres humanos encontram-se completamente excluídos dos benefícios sociais, como alimentação, moradia, educação, segurança e saúde, para afirmar a existência de hipocrisia e insensibilidade social de parcela considerável dos privilegiados que podem utilizar as redes sociais.
Grande parte das mesmas pessoas que compartilham maçantemente mensagens de amor, não hesita um segundo antes de compartilhar uma mensagem de ódio, preconceito e elitismo, como essa que busca cassar o direito de voto dos necessitados, supostamente ancorados na boa intenção de “consertar” a política brasileira. Historicamente sempre existiram pessoas aptas a construir discursos racionais, com fundamentos até humanitários, para a manutenção de indignidades, como a escravidão.
Atualmente, especificamente no Brasil, qualquer iniciativa do PT tem que ser combatida incansavelmente, mesmo ao custo de tornar mais miserável a miséria de milhões de brasileiros. É o pragmatismo político fundado na insensibilidade.
No caso desses teóricos da "ignorância política inquestionável de quem recebe benefício social", afirmam com fervor que o bolsa-família torna as pessoas preguiçosas e dependentes do Estado. Discorrem com firmeza sobre vários motivos suficientes para justificar que o miserável, esse ser humano que surpreendentemente insiste em sobreviver mesmo dispondo de menos de um dólar por dia, não receba setenta reais por mês dos cofres públicos.
Alguns confessam inclusive sentir um certo incômodo por ter de demonstrar algo tão evidente, óbvio, sendo obrigados a discorrer sobre o assunto à mesa, enquanto, com classe e elegância, degustam uma deliciosa lagosta acompanhada por um excelente vinho branco em algum restaurante fino e exclusivo.
Outros, tão empenhados estão nessa infame campanha de retirar o direito de voto dos pobres, que não aceitam perder tempo, realizando sucessivas ligações de um reluzente Iphone para arregimentar amigos seletos ao mesmo tempo em que dirige sua maravilhosa e reluzente SUV recém adquirida. Militantes aguerridos, também estão nas redes digitando freneticamente em seus caros Ipad's.
São valentes e heroicos tal e qual guerreiros americanos pilotando caças de ponta e lançando mísseis numa pequena tribo indígena a cinco mil metros de altura.
Vale relembrar o significado da palavra empatia a partir de transcrição do dicionário online Michaelis: “na psicanálise, estado de espírito no qual uma pessoa se identifica com outra, presumindo sentir o que esta está sentindo”. E também a noção de alteridade, vinculada ao entendimento de que existem coisas que são próprias do outro. Basicamente significa respeitar alguém pelo que ele tem de diferente em relação a você.
Para os militantes dessa campanha suja, parece claro que, se a pessoa é pobre e está recebendo ajuda do governo, então necessariamente é, ao lado de ignorante política, também preguiçosa, leniente e acomodada. O pensamento padrão típico dos preconceituosos elitistas é: "Não conheço essa gente, mas essa é a natureza do pobre mesmo, não é? Ter um monte de filhos para aumentar o valor do benefício e depois gastar tudo em cachaça". Essa suposta “convicção política” é apenas uma fachada sob a qual se esconde um vácuo de fraternidade, empatia e alteridade em relação aos mais pobres.
O infame discurso ergue um muro da vergonha, utilizado por pessoas privilegiadas, ricas ou classe média, não privadas das condições mínimas de dignidade, como argumento para o fim de um sistema de distribuição de renda que induvidosamente beneficia miseráveis e pessoas extremamente pobres. Afinal, elas sabem, pobre só é bom se permanecer pobre, criando um inestimável excesso de mão de obra. Pobre bom é aquele que aceita trabalhar por qualquer vintém.
Não se pode olvidar do afago no ego dos privilegiados possibilitado pela existência de uma multidão de miseráveis, uma visão que evidencia o quão prazeroso é o bem estar possuído, como são especiais por gozar de bens caros à humanidade e raros, não acessíveis à ralé. Sem a miséria comparativa não se sentiriam tão especiais.
Ainda que se concedesse uma visão benévola a essa campanha, entendendo-a permeada de boas intenções, isso conduziria à inevitável conclusão de o que ela oculta é uma brutal ignorância sobre o programa bolsa-família e seus objetivos, bem como sobre a essência da democracia.
Democracia, em seu sentido mais pujante, necessariamente implica a possibilidade de todos os membros de uma dada sociedade influírem nas decisões políticas dessa sociedade. Sob tal perspectiva, ainda que um projeto venha a beneficiar uma parcela da população, cabe a todos decidir, pois isso é o que justifica a democracia. Não cabe, por exemplo, excluir os indígenas de uma votação sobre um projeto a respeito de uma área florestal que os beneficiaria ou prejudicaria enquanto coletividade.
Exatamente pelo mesmo motivo, trata-se de arrematado disparate pretender que o miserável, que necessita de ajuda financeira, não possa votar para manifestar o seu desejo, como cidadão, de manutenção de um governo que adota uma política de transferência de renda. Em outras palavras, trata-se de exigir que somente participem da decisão sobre a manutenção ou não de um determinado programa de governo os cidadãos que não tenham seus interesses atingidos por esse programa. Grosso modo, é como se todos os eleitores da região norte fossem excluídos de um plebiscito sobre o destino da Amazônia.
Resta indagar que tipo de atividade estatal não é capaz de atingir, direta ou indiretamente, todo o povo da respectiva nação. De que modo, ainda, seriam identificáveis os interessados ou não nessa atividade? No caso do bolsa-família, por exemplo, os pequenos comerciantes dos municípios pobres certamente possuem interesse na manutenção do programa, pois a renda que dele advém aumenta suas vendas. Estariam eles também impedidos de votar? Afinal, são indiretamente beneficiados pelo programa.
Que espécie de democracia pretende o tipo de pessoa que incentiva uma campanha como essa? Talvez simplesmente abomine a democracia e tenha que disfarçar seus pendores tirânicos sob a capa sofista de um discurso de depuração democrática.
A lógica oculta que orienta os adeptos dessa campanha é a de que, a partir do momento em que os excluídos do sistema começam a votar contra os interesses dos favorecidos, devem ser eliminados do escrutínio.
No passado, no mundo e nesse país, a elite impunha o voto censitário, somente admitindo o voto por pessoas de determinado gênero (homem), cor (branca), e renda (alta). A campanha contra o voto dos excluídos envolve um certo saudosismo desse passado antidemocrático. Dois séculos atrás o Iluminismo nos salvou desse modelo de barbárie. Parece que o surgimento de um neo-iluminismo se impõe contra a escalada dos novos bárbaros.
E há outro ponto a considerar: voto de cabresto, por meio do qual o eleitor vota por temer sofrer violência física ou alguma perda material, somente funciona na presença do medo. Se não houver o prévio medo, não há como impor a votação dirigida. Nenhum partido hoje teria coragem de afirmar em campanha que excluiria o bolsa-família do guarda-chuva assistencial do Estado. Pelo contrário, o principal partido adversário do PT, o PSDB, defende com unhas e dentes que é o criador do bolsa-família e que, não somente irá mantê-lo, como melhorá-lo, ampliando as vantagens. Basta rememorar as campanhas de Alckmin e de Serra para a presidência.
Portanto, seja qual for o partido vencedor, um novo governo certamente irá manter o programa. Não somente pelo temor de que uma decisão de extinguir o programa redunde na opção dos eleitores por lhe conferir um mandato só, como também porque o programa é apreciado e elogiado no mundo inteiro como exemplo de política de transferência de renda. Vale a pena manter, pois custa pouco no orçamento e é caro em qualquer biografia.
Entendido que todos os partidos, ao menos no discurso, irão manter o bolsa-família, esvai-se qualquer possibilidade de temer o eleitor perder a renda, donde se conclui que cessa o efeito voto de cabresto.
Por outro lado, cabe a reflexão: se é possível entender que o pobre vota no partido político da situação porque recebe ajuda do governo, o que dizer sobre os empresários que recebem subsídios, juros reduzidos no BNDES, isenção fiscal ou qualquer tipo de benefício?
Claro que os ricos também possuem interesse na eleição desse ou daquele candidato que lhes pareça mais inclinados a manter suas regalias. Pela lógica da campanha anti-eleitor pobre, os empresários também deveriam ser incluídos no rol dos eleitores impedidos de votar. Não há diferença essencial entre receber benefício fiscal ou dinheiro subsidiado e receber benefício do bolsa-família. Ambos significam receber dinheiro do governo.
Aliás, há uma diferença, sim, embora não de essência, mas de grau. Os empresários não recebem a "mixaria" destinada aos pobres, mas bilhões e bilhões de reais. Os ricos recebem do orçamento federal o valor equivalente a quinze vezes o que é pago de bolsa-família. Quinze anos dos pobres equivale a um ano dos ricos.
Todavia, pelo que se percebe do posicionamento dos adeptos dessa campanha os ricos, porque são ricos, podem continuar votando. A jogada visa somente os pobres.
Pausa para reflexão.
Há um imenso erro de avaliação na interpretação de que o bolsa-família institucionalizaria o voto de cabresto. Existem estudos acadêmicos sérios que demonstram justamente o contrário, ou seja, indicam que o benefício está acabando com o coronelismo regional, está pondo fim ao direcionamento do voto, justamente o que essa campanha supostamente tenta combater.
Um desses estudos está relatado no livro “Vozes do Bolsa Família”, dos pesquisadores da Unicamp Walquíria Leão Rego e Alessandro Pinzani, que, juntos, pesquisaram durante cinco anos nos sertões nordestinos, entrevistando famílias. Veja matéria sobre o livro na Folha de São Paulo através do link: Vozes do Bolsa Família.
Como dito antes, a campanha é uma fachada. O que ela esconde, o que subjaz impronunciável, é um indesculpável inconformismo ante a melhoria na renda dos mais pobres. Por quê? Porque conferiu aos pobres um maior fôlego para, dentre outras coisas, negociar condições de trabalho mais dignas, melhores salários.
Dentre os que aderem a essa vil campanha, certamente são muitos os que, no fundo, possuem como intuito extirpar do miserável, não exatamente essa pequeníssima ajuda que o governo lhes dá, mas a capacidade recém adquirida de negociar melhor o próprio destino.
É uma campanha francamente contra os pobres, cruel, desumana.
Entretanto, não constitui uma desumanidade especial do brasileiro remediado ou rico, mas do ser humano médio do mundo inteiro. Na Etiópia faminta, vozes como essas provavelmente se levantariam contra uma eventual distribuição de comida.
Quanto ao Brasil, eis um fato histórico que aponta nessa mesma direção: quando o país começou a refletir seriamente sobre a libertação de escravos, vozes abalizadas, todas da elite, levantaram-se contra a abolição. O discurso racional, e absolutamente hipócrita, invocava piedade pelos escravos. Diziam os que se opunham à extinção da escravidão, sérios, compenetrados, provavelmente olhando para o céu em busca de confirmação divina, que os escravos não conseguiriam sobreviver sem os senhores de engenho a lhes fornecer habitação e alimentos.
A atual campanha contra o voto dos eleitores pobres incide nessa mesma estupidez e sordidez.
Não há dúvida de que constitui um direito de cada pessoa apoiar essa campanha, segundo suas próprias convicções. Porém, o mínimo que se espera de quem adira é que se abstenha de divulgar mensagens hipócritas, religiosas ou não, de amor ao próximo, de fraternidade, de altruísmo, de um mundo melhor, mais justo e equânime e coisas tais.
Que seja autêntico, assumindo a própria natureza egoísta, de direita, elitista e contra os pobres.

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