sexta-feira, 25 de abril de 2014

Capitalismo, globalização e inovações tecnológicas


Existem pessoas que defendem, com argumentos inteligentes e racionais, ser o capitalismo o melhor ambiente possível para o desenvolvimento da sociedade e do conhecimento tecno-científico do ser humano. Segundo elas, a competitividade impõe ao capitalista oferecer inovações tecnológicas aos consumidores, sob pena de, em última análise, falirem. Citam, como exemplo dessas rápidas inovações, os computadores, telefones celulares, televisores, automóveis, produtos que mal saem das prateleiras e já estão obsoletos.
São pessoas e opiniões que devem ser respeitadas, o que não impede afirmar que o raciocínio, porém, é equivocado. Aparentemente, confundem mudanças de design e novidades superficiais e supérfluas com verdadeiras inovações científicas e tecnológicas. Além disso, colocam num mesmo balaio o que é oferecido com tudo aquilo que poderia sê-lo. Os balaios são diferentes.
Na verdade, assim como ocorre na gestão de todos os seus interesses, o sistema capitalista move-se exclusivamente pela lógica do lucro, pouco se importando com a qualidade da invenção ou com a necessidade que as pessoas dela possam ter. Uma inovação somente é disponibilizada para os consumidores se estiverem em absoluta sintonia com a lucratividade. Qualquer outra novidade, por mais benefícios potenciais que encerre, mas que escape dessa lógica, é simplesmente ignorada ou, pior, escondida das pessoas.

As inovações mais importantes, aquelas que seriam capazes de mudar a vida das pessoas, talvez reduzir drasticamente a pobreza e a poluição, apenas para ficar em dois exemplos, estas dificilmente são ou serão disponibilizadas pela singela vontade do empreendedor capitalista.
Existem relatos de que um veículo movido à água teria sido inventado na década de 1970 e que sua patente teria sido comprada com o único propósito de ser arquivada indefinidamente. Ainda que tal invenção não tenha existido, é pura ingenuidade crer que as companhias petrolíferas deixariam algo assim ser produzido.
Não se pode imaginar que os carros elétricos ainda sejam raros porque sua produção seja muito complexa, sabendo que eles precederam os carros à gasolina, que acabaram prevalecendo porque o petróleo era, como ainda é, mais barato.
Essa é a lógica subjacente ao movimento do capital: o interesse da sociedade e do ser humano não é relevante para as decisões dos acionistas, apenas o lucro. Sob essa métrica autista, invenções benéficas serão retardadas ou jamais postas em prática se assim for necessário à manutenção do lucro. Pelo contrário, mecanismos poluidores e energeticamente perdulários continuarão a ser vendidos enquanto derem lucros. Não fosse assim, a principal matriz energética dos domicílios partiria de uma produção caseira barata, com a utilização de energia solar e armazenamento em baterias para uso noturno, coisa para a qual já existe tecnologia suficiente. Isso não ocorre porque quebraria as companhias fornecedoras de energia.
Quais as razões que supõe-se existir para que um bem de consumo durável na verdade não tenha nada de durável? O conhecimento humano é capaz de produzir uma geladeira que dure mais de trinta anos ou uma lâmpada que nunca queime. Por que não se faz isso? Porque isso contraria a lógica do capital segundo a qual o hiperconsumo é salutar para a economia.
Quem se importa com os danos causados ao meio-ambiente por esse consumo tresloucado? Os capitalistas com certeza não, tanto que, sabidamente, criaram a famosa obsolescência programada, segundo a qual um produto deve ser projetado para que dure exatamente um certo tempo. Chega-se ao cúmulo de colocar um chip num impressora para que ela somente imprima, por exemplo, mil cópias e, depois disso, pare de funcionar. Lâmpadas são testadas para que durem, no máximo, uma certa quantidade de horas acesas.
Não existe qualquer acanhamento ou prurido em causar doenças, até câncer, nos consumidores se isso carrear lucros aos cofres das empresas. Durante anos "cientistas" comprados defenderam que o cigarro não fazia mal algum à saúde, enquanto as propagandas exibiam fumantes que, montados em seus corcéis brancos ou surfando uma linda onda, eram exemplos de saúde, de contato com a natureza, com os animais, de vida feliz, além de conseguirem seduzir, entre as baforadas, os homens e mulheres mais belos do mundo.
O cientista americano Clair Cameron Patterson, numa pesquisa geoquímica que pretendia estabelecer a idade exata da Terra, descobriu por acaso que a quantidade de chumbo existente na superfície terrestre era milhares de vezes superior à que existia cem ou duzentos anos antes de sua pesquisa. Investigando mais a fundo, concluiu que isso se devia ao hábito da época, décadas de 1940-60, de colocar grande quantidade de chumbo na gasolina, nas tintas, pesticidas e em diversos outros produtos. O chumbo é reconhecidamente um veneno para o ser humano em qualquer quantidade. Na época de Patterson, cada ser humano na Terra carregava cem vezes mais chumbo do que o normal, estando próximos do envenenamento.
Ao perceberem, assustados, a possibilidade de perda de lucro, o que fizeram os capitalistas? Pagaram a outros cientistas para preparem pesquisas que dissessem o contrário. Por causa disso, Patterson demorou vinte anos para convencer os políticos americanos do perigo que rondava cada vida humana. Atualmente não há mais dissenso científico quanto aos efeitos daninhos do chumbo.
Claro que se pode argumentar que, tanto no caso do cigarro, como no do chumbo, a verdade acabou por prevalecer. Sim, é fato, mas em quanto tempo e a que custo? E se não fosse a necessidade de lucro, em quanto tempo tais produtos daninhos teriam sido retirados do mercado? O petróleo está poluindo o mundo há mais de um século. Quanto tempo mais?
É assim que continua a funcionar o capitalismo. Hoje estão pagando pesquisas científicas para convencer a população de que a atividade industrial humana é incapaz de provocar as mudanças climáticas que todos estão testemunhando. Segundo eles, os cientistas que dizem o contrário são eco-chatos terroristas.
É possível, mas se os eco-chatos estiverem certos, como é muito possível que estejam, e a temperatura realmente continuar a subir, então o aquecimento da água do mar poderá liberar a imensa quantidade de metano que repousa tranquilamente nas águas gélidas do fundo oceânico. Se isso ocorrer, então toda essa conversa, de fato, não terá importância alguma, pois seremos todos promovidos a outro estado de existência. Aquele... que dura para sempre.
Mesmo que, por algum milagre, o metano continue lá no fundo do mar, o aquecimento é capaz de conduzir a uma outra era do gelo. Mas, quem liga? É só comprar um casaquinho no shopping da esquina, se ainda houver shopping.
A história demonstra que os cientistas que se alinham com as empresas são, em geral, por elas regiamente pagos para isso. Em outras palavras, não são confiáveis.
O fato é que jamais o próprio capitalista irá adotar livremente qualquer inovação científica ou tecnológica que reduza o seu lucro, ainda que essa inovação seja salutar para os seres humanos. Compete, portanto, ao Estado exercer o seu poder regulatório para impor tais inovações.
Fala-se muito em globalização econômica, objetivo febrilmente perseguido pelas empresas, mas não é muito discutido entre as pessoas o que, de fato, significa essa expressão. Poucos percebem o nexo entre globalização e desregulamentação, outro alvo fortemente perseguido pelo capital. Tanto um, como outro, são filhos diletos do neo-liberalismo que se fortaleceu a partir dos governos do americano Reagan e da britânica Thatcher e que, aqui no Brasil, namorou e noivou com o PSDB de Fernando Henrique Cardoso.
A globalização é a tentativa de supressão das fronteiras para o capital. A eliminação das fronteiras, contudo, é somente para o capital. As pessoas devem permanecer dentro de suas fronteiras, pois não é saudável para o capital que os trabalhadores transitem livremente de um país para o outro, buscando melhores opções. Globalização individual, somente através da internet.
A desejada globalização econômica representa a libertação do capital das restrições da localidade. Nada mais significa do que a pretensão de libertar-se da política e da localidade, podendo o capital acordar num país e dormir em outro, sem amarras locais. A pretendida desregulamentação é um tentáculo da globalização, tratando-se de outro caminho através do qual o capital busca escapar ao poder político estatal e facilitar sua organização nas diversas partes do mundo.
Todavia, é importante ressaltar que a desregulamentação almejada, como nos adverte Baumann, não é ausência de regulação, mas mitigação ou mesmo inexistência de regulação estatal. A regulação continuaria existindo, mas autônoma, criada pelo próprio capital em cada uma de suas estruturas ou empresas, estabelecendo formas próprias de mediação com os consumidores, com os empregados, com os fornecedores, enfim, com todos que participassem da cadeia produtiva, todos subordinados às normas de cada empresa.
Não é preciso imaginação para concluir a que isso levaria a humanidade, bastando ler os livros de história, pois já houve essa experiência histórica, de um mundo quase isento de atuação estatal regulatória, na fase do liberalismo econômico da Revolução Industrial, durante o qual jornadas de doze horas de trabalho eram corriqueiras, com salários de indigência e ninguém para quem recorrer em caso de lesão a direitos sofrida por trabalhadores e consumidores.
Essa voracidade somente não prosseguiu século XX adentro porque, por diversos fatores, como as duas grandes guerras e a assunção do comunismo russo, tornou-se necessária a presença de um Estado forte que atuava como um poder moderador do apetite capitalista. Terminado o paradigma russo, o motivo que subjaz ao intento neo-liberalista é mitigar, senão eliminar totalmente, o poder político estatal.
Atualmente, em virtude da separação entre economia globalizada e legislação local, a política está desvinculada do poder real, transferido que foi para as corporações econômicas. Sem poder efetivo, a política distancia-se dos anseios populares, não representa mais os interesses da sociedade. Os políticos militam em favor de seus próprios interesses, sem discurso social, sem causa altruísta, sem projeto político e sem preocupação ética.
A ausência de finalidade na política é o principal fator para a pungente desilusão política verificada na população em geral. Os políticos não mais simbolizam a vontade popular. Nas grandes manifestações populares atuais, nas passeatas, os partidos políticos são hostilizados e convidados a não participar, o que jamais se viu e beira mesmo o paradoxo se evidenciada a razão de existir dos partidos políticos, que é justamente representar uma determinada fatia de pensamento político da população.
Nesse novo fatiamento do bolo social, os partidos não possuem mais direito a nenhuma fatia.
A globalização e a excessiva desregulamentação da atividade econômica são absolutamente deletérias para o desenvolvimento de uma sociedade humana mais justa e igualitária.
Se, por um lado, um Estado enfraquecido, esvaziado de poder, é ruim para a sociedade humana, por outro, atende perfeitamente aos interesses do capital, que vê aumentar a autonomia de suas decisões. Esse arranjo somente é bom para a super-elite, que avança cada vez com mais apetite no bolo da divisão da riqueza.
A concentração de renda vem aumentando assustadoramente. Nas últimas décadas, rompeu-se o círculo virtuoso iniciado a partir da Segunda Guerra que produzia filhos mais instruídos e mais ricos do que os pais. De um modo geral, os filhos atuais, até mesmo em países considerados desenvolvidos, como os Estados Unidos, não somente estão mais pobres e menos cultos que seus pais, como sequer possuem condições de sair da casa paterna para uma vida autônoma. Vimos nascer a geração dos adultescentes imaturos que, aos quarenta anos, continuam solteiros, morando com os pais e utilizando o pouco dinheiro que ganham para propósitos possíveis, e superficiais, como viagens de turismo barato (do tipo conheça dez países em dois dias e gabe-se disso), roupas de etiqueta ou bugigangas eletrônicas.
O capitalismo permissivo, livre ou quase-livre da atuação regulatória e fiscalizatória do Estado, é daninho para o indivíduo, para a sociedade e para o planeta. Ainda que se admita o capitalismo como o melhor sistema econômico, e não o estou fazendo, deve ele ser fortemente mitigado pela atuação do Estado, que é o ente surgido, pensado e desenvolvido pelo ser humano para representar e perseguir os interesses da coletividade.
Abra-se aqui um parênteses para ressaltar que se está tratando de sistema econômico e não de sistema político. Seja qual for o modo escolhido para conduzir a economia, a manutenção da democracia é imprescindível. Segundo uma visão particular da natureza e dos fins da democracia - a busca por uma sociedade fundada nos princípios da justiça, da liberdade, da igualdade e da fraternidade - o capitalismo apresenta-se extremamente anti-democrático.
Deve ser veementemente repudiada qualquer espécie de ditadura, ainda que, supostamente, socialista.
A propriedade privada e a livre-iniciativa sem dúvida são basilares para o tipo de sociedade na qual a maioria dos humanos decidiu viver, mas são princípios secundários em relação a outros mais relevantes, como, principalmente, o da dignidade da pessoa humana, o da liberdade individual e o imperativo da fraternidade social.
Tanto a propriedade privada, como a livre iniciativa devem estar subordinadas ao cumprimento de sua função social, entendida esta não somente o direito de o Estado desapropriar pela conveniência pública, mas evidenciada principalmente pelo dever de que sejam ambas direcionadas para a produção do máximo de felicidade possível para a sociedade.
Dado que toda a energia das empresa é exclusivamente proveniente de sua estrutura humana, pois o trabalho é atributo exclusivo do ser humano (robôs são planejados, construídos, operados e manutenidos por seres humanos), não parece razoável compatibilizar, ou relativizar, o princípio da dignidade da pessoa humana com a ideia de uma empresa direcionando a totalidade da energia humana para o enriquecimento exclusivo de seu dono e, quando muito, numa fração menor, de seus diretores.
Hoje vive-se num mundo em que o trabalho humano não é sagrado, ainda que, sem ele, a dignidade se esvaia muito rapidamente. Benefícios de assistência social são veementemente condenados, ainda que sejam absolutamente necessários para que desempregados e seus dependentes não se vejam na contingência da miséria e da fome. Em paralelo, a chamada "livre-iniciativa", subvertendo a lógica do risco do empreendimento, é protegida com imensas quantidades de dinheiro público, sob o argumento de que existem empresas que não podem quebrar. É a política do Robin Hood ao contrário, onde o dinheiro do pobre acaba por encher o bolso do rico cujo negócio contingencialmente deu errado.
Curiosamente, quando a empresa está saudável financeiramente, mas resolve extinguir uma determinada unidade que emprega milhares de pessoas, tal resolução é pacífica e privadamente resolvida numa mera assembleia de acionistas, pois, afinal, trata-se de uma decisão particular. Os trabalhadores? Bom, dizem os senhores acionistas, isso é um problema público, não nosso.
A globalização e a desregulamentação são as faces mais tenebrosas de um capitalismo que agora ousa, não apenas pronunciar o próprio nome, como despudoradamente afirmar a que veio.

O que interessa é o lucro e o dividendo, o ser humano é um problema a ser contornado, talvez eliminado.

4 comentários :

  1. Belo texto Marcinho parabéns!!! embora eu não concorde em alguns pontos ( como sempre) é sempre muito bom ser confrontado com os meus pontos de vistas, fazendo com que eu passe a ter um outra visão. abraços Vander

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  2. Vander, visões diferentes sobre a realidade são ótimas e bem-vindas, pois oxigenam as discussões.
    Valeu pela visita. Abração, cara. Marcio Valley.

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  3. Você sabe quanto tempo levou para escrever esse texto? Fico impressionada com o fluxo de pensamentos. Vem um após o outro, de forma ordenada e de uma levada só ou você vai construindo aos poucos? Como trabalho com o processo da escrita, fico pensando essas coisas... Para além disso, gostei muito do texto e hoje vou dar uma proposta de redação sobre os avanços tecnológicos a serviço da cidadania e algumas coisas que você diz podem conduzir a um diálogo que gere conteúdo para as redações dos pré-vestibulandos.

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    1. Oi, Marcinha. O fluxo de pensamento vem num caudal. Depois da massa bruta pronta, dou umas buriladas. Beijos. Marcio Valley.

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