Presumindo-se que todos ainda sejamos capazes de sonhar, que tipo de sociedade nós, brasileiros, desejamos para viver? Que espécie de comunidade humana reside em nossas utopias mais longínquas?
Assim
como todo objeto de estudo, sociedades podem ser categorizados de
diversas formas. Costumam ser rotuladas como abertas ou fechadas,
capitalistas ou comunistas, democráticas ou ditatoriais, modernas ou
primitivas, e diversas outras, sendo possível avançar em infinitas
divisões categóricas mais adequadas ao estudo que se pretende.
No
presente caso, interessa a divisão próspera ou opressiva, mais
adequada e abrangente do que, simplesmente, feliz e infeliz, que
também caberia, porém dizendo menos do que se pretende.
Embora
semanticamente a palavra opressão
envolva imediatamente o significado de dominação e autoritarismo, subjaz em seu sentido mediato a ideia de tristeza, depressão e frustração decorrente do sentimento sempre presente de impotência e ausência de livre-arbítrio. Uma sociedade oprimida é geralmente formada por indivíduos que sentem perdedores, impotentes e infelizes.
envolva imediatamente o significado de dominação e autoritarismo, subjaz em seu sentido mediato a ideia de tristeza, depressão e frustração decorrente do sentimento sempre presente de impotência e ausência de livre-arbítrio. Uma sociedade oprimida é geralmente formada por indivíduos que sentem perdedores, impotentes e infelizes.
A
ideia mais simples de opressão é a de alguma coisa mais forte
exercendo pressão sobre outra mais fraca, de modo a impedir que a
mais fraca realize qualquer movimento não desejado pelo mais forte.
Em
regra, toda sociedade é opressora, dado que viver em sociedade
implica necessariamente abdicar do desejo individual em favor do
benefício coletivo. Todavia, em certos casos a sociedade oprime
muito além do que seria minimamente necessário para o bem comum.
Freud, em seu opúsculo "O mal-estar na civilização",
pontificou que a vida em sociedade, ou seja, a civilização, por ele
também identificada como cultura, é sempre caracterizada pela
antítese liberdade x segurança. No início do século XX, quando o
escreveu, o pai da psicanálise já considerava que as pessoas haviam
cedido liberdade demasiada em favor de uma suposta segurança, sendo
daí que derivava a maior parte dos problemas psicológicos. Ou a
infelicidade, acrescento.
Atualmente,
quando a hipotética profundidade do terrorismo conduz estados
considerados altamente ciosos da liberdade, como os Estados Unidos, a
prender cidadãos sem ordem judicial, sem o direito de defesa e por
prazo indeterminado, o que Freud diria?
São
exemplos gritantes de excesso opressor as questões que envolvem a
homoafetividade e o exercício da sexualidade em geral, o uso de
drogas, a prostituição, o aborto e outras que em geral impõem ao
indivíduo restrições que visam exclusivamente satisfazer uma
duvidosa, e muitas vezes hipócrita, satisfação moral coletiva, que
é coletiva somente para eles, os incomodados que possuem voz, e não
para a efetiva coletividade. Exemplos drásticos de sociedades
opressoras seriam as que permitissem o trabalho escravo, adotassem o
genocídio como programa de governo ou a transformação compulsória
dos cidadãos em espiões uns dos outros, com delações
obrigatórias, sob pena de prisão ou morte. É interessante
relembrar que, nesse último exemplo, o regime de governo da
sociedade se transformaria em totalitarista, segundo descreveu Hanna
Arendt, pois o terror difuso daí decorrente, de ser delatado pelo
parente ou pelo vizinho, se dissemina e atomiza a sociedade, ou seja,
a degenera, tornando o que era sociedade em mero ajuntamento de
pessoas, cada uma preocupada apenas com os próprios e imediatos
interesses e, de preferência, encerrada solitariamente em sua casa,
com temor de interrelações.
Uma
forma mais branda de opressão, em geral admitida pelo silêncio
obsequioso de quem produz opinião pública, mas nem por isso menos
importante, se materializa através da má distribuição da riqueza.
A miséria e a pobreza são, sempre, opressivas, capazes de impedir o
exercício dos mais elementares direitos da pessoa, não somente os
mais óbvios, como o de ter abrigo e alimento, mas também os de ir e
vir (aprisionando a pobreza em guetos) e o de obter conhecimento
(imobilizando o pobre no estamento em que nasceu).
Uma
sociedade opressora, pois, é aquela que exerce abusivamente o
direito de restringir a liberdade individual, assim impedindo que os
indivíduos que a compõem se autodeterminem e, consequentemente, se
realizem nos modos por eles desejados.
Prosperidade,
por sua vez, deve ser compreendida no sentido abrangente de bom êxito
na vida e costuma ser acompanhada da sensação geral de felicidade.
Claro que não cabe, de forma alguma, igualar "bom êxito na
vida" ao significado rasteiro e frívolo de "ganhar muito
dinheiro". A palavra guarda maior afinidade com a ideia de
florescimento pessoal desenvolvida pelo economista ecológico inglês
Tim Jackson, em seu livro "Prosperidade sem crescimento – Vida
Boa em um Planeta Finito", cuja leitura é enriquecedora.
Dentro
dessa significação, ganhar dinheiro até o ponto da obtenção de
uma renda digna é apenas um dos diversos requisitos necessários ao
atingimento da meta de florescimento pessoal, que obviamente não é
passível de ser alcançada por quem sequer possui alimento ou
abrigo. A prosperidade individual, o florescimento pessoal, somente
se inicia a partir da satisfação das necessidades básicas, nunca
antes.
Renda
digna, todavia, não é riqueza e nem chega perto desse conceito.
Riqueza corresponde à acumulação de bens além do necessário à
manutenção de uma vida digna. A riqueza, na verdade, pode se tornar
um empecilho à prosperidade, pois traz consigo, além da fartura em
satisfações materiais, os abalos espirituais decorrentes da mera
posse já que, via de regra, quem tem alguma coisa se preocupa com
essa coisa e, sob diversos ângulos, a ela está aprisionado.
A
prosperidade, pois, se identifica amplamente com os seguintes
desejos: manter bom relacionamento com familiares e amigos; segurança
material para si e para essas pessoas; realização de ações
gratificantes, profissionais ou não; manutenção de um emprego
decente e atrativo com renda suficiente para que se viva dignamente;
e participação ativa nas decisões de sua comunidade, com isso
desenvolvendo um sentimento de pertencimento.
Assim
entendido, renova-se a indagação inicial: que Brasil queremos?
Próspero, e portanto, feliz? Ou opressivo e, assim, infeliz?
Fruto
da melhoria geral na renda dos brasileiros ocorrida nos últimos
anos, é cada vez mais comum que brasileiros viajem para outros
países, tendo a oportunidade de conhecer outros povos, outras
culturas, outras experiências de vida em comunidade. E não são
poucos os que ficam maravilhados com o que veem. Um ponto muito comum
é a sensação de segurança e respeito às leis que percebem no
exterior. Espantam-se com a ausência de roubos a transeuntes.
Admiram o fato de que automóveis param em faixas de pedestre, sem
sinal vermelho, para o pedestre atravessar.
Deixando
de lado o fato de que, em geral, sente-se mais segurança em lugares
cuja amplitude dos riscos desconhecemos, surge daí a pergunta: por
que esses povos tendem a respeitar mais a ordem legal, serem mais
urbanos e possuir menos criminalidade?
Como
resposta, afirma-se que essas sociedades possuem uma cultura
superior, mais antiga e por isso mais desenvolvida, com um povo mais
educado e menos propenso ao roubo e à corrupção. Em geral,
brasileiros, os novos viajantes, acabam por concluir que a culpa é
de quem habita o Brasil, ou seja, o povo brasileiro, ignorante,
inculto e desonesto por natureza.
Trata-se
do que foi maravilhosamente bem sintetizado por Nelson Rodrigues
através da expressão "complexo de vira-lata". Disse o
dramaturgo que o "brasileiro é um narciso às avessas, que
cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos
pessoais ou históricos para a autoestima".
Não
há dúvida de que certas sociedades são mais antigas, educadas e
cultas do que a nossa. Isso, porém, por si só, não dá conta de
explicar por que suas sociedades respeitam mais as leis e são menos
propensas à violência do que a brasileira.
O
fato é que a conclusão simplista, fundada no reducionismo da
comparação direta entre povos que se encontram em momentos
históricos distintos, não pode ser admitida como verdadeira. Nenhum
povo é mais ou menos propenso ao respeito às leis ou a descambar em
violência. Nem os admirados, nem os cuspidos (nós, os brasileiros).
De forma geral, seres humanos submetidos aos mesmos níveis sociais
de temperatura e pressão, agirão de forma similar. Trata-se de
questão evolutiva e não cultural e, por isso mesmo, é uma
inclinação mais forte do que a que decorre da civilização na qual
se inserem.
Se
sociedades inseridas no estado de direito e fundadas na lei autorizam
a prevalência do interesse do opressor politicamente mais forte (é
a elite que elabora as leis), com muito mais razão prevalecerá, e
de forma exponenciada, a opressão pela força física direta num
ambiente sem a presença inibidora da lei e do Estado ou, ainda pior,
quando a iniciativa opressora do indivíduo encontrar eco na
estrutura do Estado. De fato, vários experimentos acadêmicos foram
capazes de demonstrar que a ausência de controle externo ao
indivíduo é capaz de conduzi-lo à prática do mal banal e ao
crime, sendo exemplo o que foi conduzido pelo psicólogo Philip
Zimbardo na Universidade Stanford, na Califórnia, Estados Unidos,
que pode ser visto no filme alemão "A experiência",
filmado em 2001.
A
sociedade mais culta e educada da Europa, a alemã, nos proporcionou
o exemplo mais hediondo de opressão, o nazismo. Outra cultura
antiga, a russa, foi vencida pelo totalitarismo comunista. A cultura
mais antiga e ordenada do planeta, a chinesa, cedeu à violência
opressiva de Mao, principal responsável pela maior carnificina da
história da humanidade. Filhos diletos dos civilizados europeus, os
americanos não hesitam em guerrear e matar, e não hesitaram em
dolosamente matar centenas de milhares de civis inocentes com a bomba
atômica, fundados em racionalismos antiéticos e amorais.
Num
certo sentido, e dado que o Brasil não se envolve costumeiramente em
guerras, pode-se afirmar que, desde 1500, nosso país possui um dos
povos mais pacíficos do mundo, que abomina a violência.
Isso
significa que deve haver algum elemento social que nos distinga da
sociedade europeia, e de outras admiradas sob o viés do vira-latas
complexado, que seja responsável pelo maior número de crimes contra
o patrimônio e contra a vida que ocorrem no Brasil e, também, pelo
maior descaso com a legislação.
Claro
que há e são, principalmente, dois elementos. Chamam-se
universalização da educação de qualidade e transferência de
renda ou, mais comumente, reunidos ambos em uma expressão só,
estado de bem-estar social.
Trata-se
de obviedade: quanto menos pressão ambiental o animal enfrenta em
relação à obtenção de abrigo e alimento, menos ele reagirá em
relação ao outro. Serve para o leão, para a formiga e para o ser
humano.
É
mais fácil ser gentil e educado com vizinhos e estranhos quando a
família está abrigada e alimentada e o filho estuda em bom colégio.
Se isso é alcançado por renda própria ou através de programa
governamental de transferência não importa, o efeito será o mesmo.
O que importa é que, em geral, quem sobrevive dignamente tende a
estar mais satisfeito com a sociedade que integra e menos propenso a
surtos de ira ou revolta.
Claramente
o ressentimento, a depressão e o estado geral de infelicidade são
fatores determinantes para o descumprimento da lei e para a ação
criminosa. Uma pessoa preocupada com a próxima refeição ou onde
sua família irá dormir terá menos inclinação a parar na faixa de
pedestres (presumindo-se que por alguma razão esteja dirigindo
embora não tenha dinheiro para comer), simplesmente porque terá
menos respeito por todas as pessoas que a cercam.
Pode-se
imaginar um agrupamento humano do tipo "cada um por si".
Difícil seria categorizar tal agrupamento como sociedade humana,
cujo valor semântico embute a noção de associação para ajuda
mútua. Um agrupamento "cada um por si" seria socialmente
inferior a um bando de leões, já que, nele, todos comem
independentemente de terem caçado, mesmo os dorminhocos.
Em
qualquer agrupamento animal do tipo "cada um por si" é
natural que os indivíduos menos favorecidos ataquem a caça dos mais
favorecidos. Portanto, a opção por essa espécie de sociedade
importa a ciência prévia de que haverá um certo incremento nos
assaltos à propriedade privada.
Eis
aí, pois, uma explicação para a aparente bonomia europeia,
japonesa ou qualquer outra: são países cujos habitantes, por
emprego ou por transferência de renda, não sofrem as pressões pela
sobrevivência que os brasileiros sofrem.
Os
Estados Unidos em geral são exemplificados como país no qual o
estado de bem-estar social não existe. Não é verdade. A taxa de
pobreza absoluta nos EUA é de 21% da população, índice que cai
para cerca de 12% após as transferências governamentais (1). E esse
é um país desenvolvido que transfere pouco. Os europeus são mais
arrojados.
Na
Suécia, a taxa inicial de pobreza absoluta é de cerca de 24%, que
cai para cerca de 6% após a intervenção do estado. Na França, 36%
e 10%, respectivamente. A Noruega, de forma mais ousada, praticamente
elimina a pobreza, pois reduz para cerca de 2% da população uma
miséria que, sem transferência de renda, seria de mais de 9% (1).
E
no Brasil? Como melhoramos a renda dos menos afortunados?
O
pobre brasileiro que trabalha possui direito ao salário-família,
cujo valor é de R$ 37,18, para quem ganha até R$ 725,02, e de R$
26,20, para quem ganha até R$ 1.089,72 (2). Acima desse valor, nada.
R$
26,20 e R$ 37,18, ou seja, o correspondente a cerca de 4% de um
salário mínimo que, por si, já é ridículo (R$ 880,00 a partir de
janeiro de 2016). Será que não vai fazer falta no orçamento
federal?
O
brasileiro que tem emprego, e ganha até dois salários mínimos
mensais, também possui direito a um salário mínimo anual, através
do PIS, o que corresponderia ao 14º salário, o que, considerado o
novo salário mínimo, equivale a um acréscimo salarial mensal de R$
73,00 (3). Novamente: não vai fazer falta essa derrama de dinheiro?
Fica-se
assim: um cidadão brasileiro que está empregado e recebe salário
mínimo, na verdade ganha o equivalente a cerca de novecentos reais
após o incremento de salário-família, projeção da parcela
duodecimal do PIS e dedução da contribuição previdenciária. É
isso: o afortunado brasileiro empregado ganha cerca de 225 dólares
mensais.
O
Dieese projetou, para novembro de 2015, o valor de R$ 3.399,22 para o
salário mínimo ser capaz de atender às necessidades de habitação,
alimentação, educação e lazer (4).
Conheço
vários críticos do bolsa-família que dariam um tiro na cabeça se
recebessem como salário o valor projetado pelo Dieese. Portanto, não
sofreriam com o real salário mínimo, de R$ 880,00, pois já teriam
morrido antes.
Mas,
esses são os sortudos, os brasileiros que têm emprego. E os que não
conseguem emprego?
Quem
não consegue emprego possui, basicamente, o bolsa-família, o qual
somente é dado às mães ou aos pais solteiros ou viúvos.
Brasileiros
sem filhos, homens e mulheres, e sem renda somente possuirão amparo
a partir dos 65 anos, quando terão direito a uma aposentadoria
especial sem contribuição. Até lá, é como diz Bauman, terão que
resolver individualmente os problemas que decorrem do coletivo.
Soluções privadas para questões públicas nada mais significam do
que o império do "cada um por si" descrito no início, que
nos involui à animalidade.
A
falta de emprego ou de empregabilidade não decorre de ação ou
omissão do indivíduo, mas de circunstâncias da sociedade, que
tanto não produz a educação necessária, como não é capaz de
gerar o número suficiente de empregos. Aliás, a civilização
humana será cada vez mais incapaz de produzir empregos em número
satisfatório, trata-se de uma bomba-relógio já acionada e que deve
ser desativada o quanto antes. A ideia de pagamento social sem
trabalho parece que será uma das soluções possíveis.
Como
transferir às pessoas a solução de problemas que estão muito
acima de sua potência e capacidade de decisão? A resposta é
simples: não é possível.
Não
cabe invocar a Índia, como se costuma fazer, como exemplo de
sociedade pobres e pacífica. De pacífica a Índia possui pouco,
tratando-se de país em eterno conflito de fronteiras, com terrorismo
e fundamentalismo religioso que chega aos embates físicos entre
indivíduos de religiões diferentes. Embora o que foi dito antes, há
o esforço em exercer a cultura da não-violência, famosa em Gandhi,
que não é típica na maioria das demais civilizações. Deve ser
considerado também que aquele país iniciou um projeto de redução
da desigualdade antes do Brasil, de modo que a desigualdade afrontosa
que oprime e conduz à reação é inferior á do Brasil.
Paralelamente, se a propriedade é algo respeitada pelos indianos,
outros valores não são, gerando conflitos sociais que não possuem
tal dimensão no Brasil, como os estupros e os já apontados tremores
religiosos.
Tampouco
cabe se irresignar pela circunstância de ser possível a alguém
viver sem trabalhar. Primeiro, porque ninguém escolhe quando ou onde
nascer e, ao nascer, encontra uma cultura completamente formada e
contra a qual não pode se opor. A sociedade humana não fornece
opções aos incomodados que não desejam integrá-la, aos que não
se adaptam às suas regras. Antes do domínio da propriedade privada,
sempre era possível aos desajustados o retorno ao estado de
natureza, à caça e à coleta. Se Buda nascesse atualmente, teria
dificuldades em vagar pelo mundo em busca de elevação: encontraria
um sem número de arames farpados a barrar o seu corpo e, portanto, a
ferir o seu espírito. Hoje, com as propriedades cercadas e muradas,
com as fronteiras fechadas à imigração e com as florestas, a fauna
e a flora protegidas por lei (ainda bem), se tornou impossível
abdicar da convivência social.
Segundo,
porque não trabalhar se constitui em opção individual e legítima.
Se alguém resolve viver de forma mínima, frugal, quase ascética,
sem preocupação com o consumo, com exigência apenas de abrigo e
alimento razoáveis, e não há como viver do meio natural, o que
fazer? Encarcerá-lo? Essa opção, com o aparato estatal necessário
à repressão e com a construção de um sem número de prisões,
poderia sair bem mais cara, além de claramente ser desumana.
Fuzilá-lo? Infeliz da sociedade que mata seus desajustados. Claro
que não. Então é melhor que seja sustentado pela coletividade, o
que pode resultar inclusive em benefícios. Quantos não se
dedicariam a alguma arte ou ao conhecimento, retornando em beleza e
cultura a pequena migalha que lhe foi entregue?
A
inveja do ócio alheio não deveria afligir quem possui ânsia de
aquisição de maior quantidade de bens materiais. Com certeza um
programa como o bolsa-família não será capaz de preencher a
vaidade de possuir um smartphone último tipo ou de custear
uma viagem de turismo internacional. Quem deseja uma renda ótima
jamais se contentará em receber apenas uma pequena ajuda do governo.
São
realidades distintas e não deveriam provocar choque.
Terceiro,
porque nem sempre quem recebe auxílio do governo está desempregado.
O auxílio, cujo valor é quase insignificante no Brasil, é, em
princípio, para complementar renda e não para ser sua única fonte.
Isso significa que o benefício é, em grande parte, dirigido a
pessoas que são exploradas por alguém, que obtém lucro através do
pagamento de salário irrisório. Sendo assim, a transferência de
renda ganha a dimensão nobre de redução de flagrante injustiça
social.
Como
é difícil, nesse momento, exigir que empregadores em geral paguem
um salário mínimo superior, inclusive porque, ao lado dos
exploradores, encontram-se microempregadores sem condição de pagar
mais, aplica-se o paliativo de aumentar a renda através da carga
tributária.
Como
criticar isso num país que transfere mais de um terço (36%) de toda
a arrecadação tributária para os ricos (mais de 240 bilhões de
reais), através do pagamento de juros dos títulos da dívida
pública?
Se
somados os valores pagos a título de aposentadoria rural, benefício
de prestação continuada, renda mensal vitalícia,
seguro-desemprego, PIS e bolsa-família, a transferência de renda
para os pobres não chega a 17% do orçamento federal, sendo que o
bolsa família responde por menos de 1% dessa fatia.
Então
o que está travando o Brasil é a transferência de renda para os
pobres, de 17%, e não a dos ricos, de quase 40% do mesmo orçamento?
Isso
sem considerar que a transferência para os ricos, em geral, é
definitiva, ou seja, não volta aos cofres públicos, enquanto a dos
pobres, destinada basicamente ao consumo mais urgente, em geral
retorna por metade na forma de impostos indiretos. E essa conta
também deixa de levar em conta que os ricos igualmente são
beneficiados por transferências indiretas, sendo exemplo a prática
de empréstimos concedidos com juros subsidiados no BNDES ou isenção
fiscal aplicada como incentivo à instalação de fábricas ou
incremento das vendas.
Aquelas
sociedades que, vistas de longe, causam salivação pavloviana em
certos vira-latas, por inveja, tributa pesadamente suas classes média
e rica e em geral impedem a transmissão da totalidade da herança
pela via de dura taxação. Em certos países europeus, a carga
tributária é de quase 50%, enquanto no Brasil é de pouco mais de
34% (5).
Apenas
como exemplo, um trabalhador que receba alto salário, digamos, R$
800.000,00 (oitocentos mil reais) por ano - ficará em média com 74%
desse valor se brasileiro for, enquanto, mantido o mesmo padrão
salarial em dólares, ficará com 54% na Itália e 56% na Alemanha
(6).
Como
outro exemplo de favorecimento aos cidadãos do andar de cima, afirma
o senador Lindbergh Farias (7), em discurso no Senado, que somente o
Brasil e a Estônia, em todo o mundo, isentam totalmente os
dividendos recebidos por rentistas.
Da
lista elaborada em 2012 pela instituição inglesa Legatum
Institute (8), dos países
considerados mais prósperos do mundo a partir dos critérios de
saúde da economia, empreendedorismo e oportunidades, governança,
educação, saúde individual, segurança e sensação de segurança
pessoal, liberdade pessoal e capital social, os três primeiros
colocados são escandinavos: Noruega em primeiro, Dinamarca em
segundo e Suécia em terceiro. Todos com carga tributária elevada e
com programas de transferência de renda que não podem ser
comparados ao bolsa-família. A transferência de renda é real,
pesada, em valores altos inclusive para os padrões europeus. E todos
países pequenos se comparados ao Brasil, necessitando, portanto, de
um compromisso orçamentário menos impactante para atender às
demandas sociais, não somente de renda, mas de educação, saúde e
segurança.
Aí
está a evidência cabal de que tributação elevada nas camadas
superiores, com auxílio aos desamparados e prestação de serviços
públicos de qualidade, principalmente educação, é capaz de
reduzir a desigualdade e as tensões sociais, contribuindo para a
sensação de paz testemunhada pelos nossos viajantes e causa de
tanta dor de cotovelo.
São
brasileiros, entretanto, que, mais favorecidos, reclamam de serviços
públicos que não usam, do gigantismo de um Estado do qual pouco
necessitam e também de uma carga tributária que não lhes pesa no
bolso, teses que se contradizem se analisadas a fundo.
O
problema de quem se opõe ao auxílio governamental aos pobres
brasileiros é que invejam sociedades que consideram civilizadas
apenas no que toca aos efeitos visíveis, mas não às causas
subjacentes. O motorista que para na faixa de pedestre é o último
degrau numa escada de causalidades cujo primeiro degrau é a
participação mais significativa, honesta e fraterna dos empoderados
nesse grande condomínio que se chama nação.
Essa
conclusão em nada é afetada ou mitigada pelo insano esforço
mundial atual de reduzir ou acabar com o welfare state
na Europa. Trata-se de gigantesco equívoco que, se levado a efeito,
produzirá efeitos nefastos no futuro. Hitler nasceu do grito dos
desesperados e foi isso que, cessado o conflito, conduziu ao
estabelecimento do estado de bem-estar social. Quem não aprende com
a história...
Que
tipo de sociedade desejamos para viver?
Uma
no qual o vizinho desempregado consiga sobreviver ou uma na qual ele
seja obrigado a pular o seu muro e roubar para alimentar a família?
Para
mim a resposta parece clara e cristalina: prefiro viver no estado de
bem estar social e andar em paz nas ruas, ainda que isso me custe uma
facada mais aguda em meu salário.
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