Então...
estou calmo. Estranhamente calmo.
Não
é como a calmaria que sucede a violenta tempestade. É a calma
típica do deprimido, da quem sente a impotência. É mais como a
tranquilidade transitória de quem está no olho do furacão e sabe
que, breve, muito breve, será atingido pela fúria indomada dos
ventos. Há um aperto indistinto no coração, aquele que nos acomete
quando estamos plenamente cientes da inevitabilidade do que virá e,
justamente por sua natureza inevitável, nada, absolutamente nada
podemos fazer em relação ao futuro. Woddy Allen, jocosamente, se
dizia bastante preocupado com o futuro, já que é lá que pretende
passar o resto de sua vida. Eu também, Woody, eu também, juntamente
com minha família e todas as pessoas que amo. Como chegamos a esse
ponto? De que forma deixamos escapar essa oportunidade única de nos
livrarmos dessa pecha pejorativa de país do futuro, de país em vias
de desenvolvimento? Quase chegamos lá e... de repente, voltamos aos
anos 1990. Por que?
Não
tenho um resposta exata para esse questionamento. Tenho suspeitas,
tenho sensações, tenho intuições, mas... certeza, não tenho
nenhuma.
Suspeito
que o povo tenha sido iludido pela propaganda dos meios de
comunicação, que desde 2003 vêm sistematicamente sabotando as
ações do governo, com o claro de objetivo, primeiro, de produzir a
derrota do partido nas eleições, e, seguindo, após o insucesso
desse intento, de criminalizar ações partidárias que notória e
historicamente integram as ações políticas de partidos e governos,
como qualificar de corrupção financiamentos de campanha que foram
declaradas à justiça eleitoral ou de projeto de eternização no
poder e de aparelhamento do governo a distribuição de cargos,
prática elementar de qualquer partido que assume o governo.
Falácias,
mentiras, exageros, deturpações, tudo enfiado goela abaixo da
população em doses diárias, dia após dia, ano após ano, até que
se tornem verdades.
E
o povo é enganado porque é inculto. Não, não entendam isso como
uma afirmação arrogante, é um fato, ainda que desagradável e
indesejável. A maioria da população, de todas as épocas, sempre
foi formada por pessoas incultas, sem acesso à educação ou, quando
a tem, sem lograr alcançar o conhecimento geral mais abrangente que
permite a formação de uma crítica própria da realidade
circundante. E isso não é sem razão, faz parte do projeto de
manutenção do poder desde os antigos faraós até os atuais donos
das corporações e conglomerados, que incluem necessariamente... as
empresas de "comunicação", que ironia.
O povo é inculto mesmo nas camadas consideradas educadas, mesmo
entre os que conseguem um diploma de nível "superior".
Grande parcela destes integra a classe média. Na maioria, deambulam
na fronteira que separa o conhecimento mais aprofundado, sempre e
necessariamente diletante, daquele meramente obrigatório à inserção
no mercado de trabalho. Em geral, são os que mais facilmente são
cooptados pela propaganda do "mercado", que é veiculada
pelas vejas e jornais nacionais da vida. Isso porque são
deslumbrados, são consumistas, admiram e adulam os ricos que os oprimem,
desejam ardentemente serem identificados como "amigos" de
poderosos, sempre que possível os adicionam em redes sociais (o
contrário é bastante improvável, mas eles fingem que não
percebem), deliram que integram a elite, temem ser equiparados aos
pobres mais incultos do que eles e reservadamente sonham em se tornar
os novos opressores. São os "homer simpson" do Bonner.
Nesse
sentido, os verdadeiramente incultos, aqueles que pouco ou nenhum
acesso tiveram à educação formal, muitas vezes demonstram uma
sabedoria superior a desses fronteiriços, pois a dureza da vida
torna suas visões de mundo mais realistas, mais "pé no chão".
Quanto
aos que, de fato, estão um degrau acima na escadaria da cultura,
creio que são de três espécies: os idealistas, os que se vendem e
os que possuem interesse na miséria.
Os
idealistas são sinceros em suas manifestações. Honestas
intelectualmente mesmo quando equivocadas, suas falas representam o
que de fato pensam. Formam fileiras à direita e à esquerda, mas têm
em comum a utopia de uma sociedade mais digna e menos desigual. A
diferença é de método. Os de direita acreditam que o crescimento
da riqueza individual culminará na riqueza coletiva, bastando
esperar o bolo crescer livremente, após o que a divisão tende a
ocorrer naturalmente. Os de esquerda possuem pressa, pois sabem que a
fome e a dignidade humana não podem esperar o tanto de tempo
necessário para o crescimento desse bolo, que já tarda. Afinal, já
se passaram cinco mil anos de civilização, durante os quais,
sistematicamente, 1% da população se beneficiou dos restantes 99%,
como nos conta Piketty em seu precioso livro.
Os
que se vendem são isso mesmo: mercenários da intelectualidade. Seja
por dinheiro, seja por fama, seja por ambas, sabem o que é certo,
entendem o que a moralidade determina, mas o que interessa são os
interesses que interessam, ou seja, os deles mesmos. Ególatras ou
meramente egoístas, condenam o futuro coletivo em nome do
eu-presente e, para isso, não respeitam sequer a própria biografia.
Nenhum caráter, nenhum princípio, nenhum escrúpulo, só dinheiro e
fama. Alguns agradam tanto aos patrões que são premiados com a
indicação para alguma entidade jurídica ou literária de renome, e
posam pomposamente com seus bigodes ao lado de outras celebridades do
mesmo naipe; outros, provavelmente acometidos pela síndrome de
estocolmo, de torturados pelo sistema, viram seus fieis empregados e
seguidores da cartilha conservadora. São os vira-latas da cultura,
prontos a aceitar caninamente qualquer lixo que os alimente.
Por
fim, existem os que possuem interesse na miséria. São pouquíssimos,
não mais do que algumas centenas no mundo todo. Dominam todos nós,
inclusive os presidentes dos países mais poderosos do mundo. A
manutenção da miséria e da ignorância é parte essencial de seus
planos, pelo mesmo motivo que os Morlocks alimentavam os Elois. Esses
são movidos pela lógica dos predadores. Não odeiam o populacho, é
que eles são a sua presa, o seu alimento, a sua fonte de poder.
Outra
sensação que tenho é de que os jovens manifestantes de 2013
erraram feio o alvo. Ajudaram a eleger o pior parlamento brasileiro
de todos os tempos. Inacreditavelmente, pouco mais de um ano após o
quebra-quebra de junho de 2013, nossa saudada primavera tupiniquim, o
conservadorismo político, responsável por tudo o que eles
condenavam nos protestos, não somente foi reeleito, como reforçado.
O retrato vil desse parlamento ficará na memória para sempre: os
"pelo meu marido", "pela minha esposa", "pelos
meus filhos", "pela rapariga que eu sustento em outro
bairro", envergonharam toda a nação. Petistas e antipetistas
se viram unidos pelo vexame após essa votação infame. A canalhada
mostrou a sua cara.
E,
por fim, uma intuição: a religião é cúmplice desse estado de
coisas no qual os encontramos. As autoridades religiosas resolveram
pôr fim a uma convivência saudável com a política, que já vinha
de muito, convivência que se fundava em um mandamento básico e
simples: o estado é laico, política e religião não se misturam.
Em busca de negociatas, de sinecuras ou de implementação de
políticas conservadores e obscurantistas, as religiões,
especialmente as pentecostais, deram de promover seus próprios
candidatos ao parlamento e ao executivo. Na última eleição, foram
eleitos 52 deputados representativos dos interesses evangélicos.
Isso representa mais de 10% da representação parlamentar, o que é
um perigo para a civilidade. Devemos nos lembrar que a liberdade de
religião, inclusive não professar nenhuma delas, é um avanço
civilizatório extremamente valioso e isso somente foi possível com
a saída da igreja da política institucional. No passado, valores
religiosos eram impostos a todos, sob pena do crime de heresia e
condenação à morte. Fico imaginando o que um evangélico diria se
fosse obrigado a cumprir alguma ação com origem no candomblé ou na
umbanda, como, por exemplo, um feriado do Dia da Pomba Gira, a
padroeira da cidade ou do estado, ou se tivesse que permanecer numa
repartição pública que ostentasse a estátua de Zé Pilintra ao
invés de um crucifixo na parede.
Assim
como Woody Allen, pretendo morar no futuro por um bom tempo. Por
conta disso, sempre desejei sucesso a todo e qualquer governo, mesmo
os que não receberam meu voto. Não se trata de capitulação, mas
de republicanismo e democracia. Democracia não se consolida pela
vitória através do voto, mas em saber perder pelo voto. Faltou isso
a grande parte de nossos eleitores: saber perder, aguardar a próxima
eleição. O resultado dessa insanidade: retrocedemos décadas.
E
o que resultou dessa luta insana? Bem, se o impeachment passar,
entrará o Temer, que está envolvido em denúncias de corrupção na
operação Lava-Jato. A Dilma, como todos sabemos, não consta de
nenhuma denúncia nesse processo ou em qualquer outro que apure
corrupção. Acusaram o PT de aparelhamento do estado, não é mesmo?
Pois o Temer já está loteando os ministérios em busca da tal
governabilidade. Os convidados são as figuras políticas de sempre,
metidas em falcatruas até o pescoço. Possivelmente haverá um
refluxo no combate à corrupção, o próprio Sérgio Moro já fala
em pôr fim ao processo. Claro, seu trabalho, que não era combater a
corrupção, já está feito. E o que volta à agenda política? Isso
mesmo: inibir aposentadorias, reduzir direitos trabalhistas,
privatizações (inclusive da Petrobras), abertura ao capital
estrangeiro (inclusive de petróleo e empresas de comunicação).
Enfim, a agenda fracassada do neo-liberalismo do PSDB está de volta.
Dizem
que somos um povo sem memória, não acredito que tenham razão. Mas,
do que falávamos mesmo? Hum... ah, sim, lembrei...
Então,
fica assim: sai o PT e tudo fica como dantes, com corrupção
galopante, mas silenciosa e sem as manchetes escandalosas diuturnas,
sem as operações da Polícia Federal e, quem sabe, com um novo
Engavetador Geral da República, como costumava ser e era tão bom,
não é mesmo?
Como
disse no início, estou calmo, estranhamente calmo...
Esse texto é primoroso, muito bom mesmo.
ResponderExcluir