sexta-feira, 6 de maio de 2016

No olho do furacão


Então... estou calmo. Estranhamente calmo.
Não é como a calmaria que sucede a violenta tempestade. É a calma típica do deprimido, da quem sente a impotência. É mais como a tranquilidade transitória de quem está no olho do furacão e sabe que, breve, muito breve, será atingido pela fúria indomada dos ventos. Há um aperto indistinto no coração, aquele que nos acomete quando estamos plenamente cientes da inevitabilidade do que virá e, justamente por sua natureza inevitável, nada, absolutamente nada podemos fazer em relação ao futuro. Woddy Allen, jocosamente, se dizia bastante preocupado com o futuro, já que é lá que pretende passar o resto de sua vida. Eu também, Woody, eu também, juntamente com minha família e todas as pessoas que amo. Como chegamos a esse ponto? De que forma deixamos escapar essa oportunidade única de nos livrarmos dessa pecha pejorativa de país do futuro, de país em vias de desenvolvimento? Quase chegamos lá e... de repente, voltamos aos anos 1990. Por que?

Não tenho um resposta exata para esse questionamento. Tenho suspeitas, tenho sensações, tenho intuições, mas... certeza, não tenho nenhuma.
Suspeito que o povo tenha sido iludido pela propaganda dos meios de comunicação, que desde 2003 vêm sistematicamente sabotando as ações do governo, com o claro de objetivo, primeiro, de produzir a derrota do partido nas eleições, e, seguindo, após o insucesso desse intento, de criminalizar ações partidárias que notória e historicamente integram as ações políticas de partidos e governos, como qualificar de corrupção financiamentos de campanha que foram declaradas à justiça eleitoral ou de projeto de eternização no poder e de aparelhamento do governo a distribuição de cargos, prática elementar de qualquer partido que assume o governo.
Falácias, mentiras, exageros, deturpações, tudo enfiado goela abaixo da população em doses diárias, dia após dia, ano após ano, até que se tornem verdades.
E o povo é enganado porque é inculto. Não, não entendam isso como uma afirmação arrogante, é um fato, ainda que desagradável e indesejável. A maioria da população, de todas as épocas, sempre foi formada por pessoas incultas, sem acesso à educação ou, quando a tem, sem lograr alcançar o conhecimento geral mais abrangente que permite a formação de uma crítica própria da realidade circundante. E isso não é sem razão, faz parte do projeto de manutenção do poder desde os antigos faraós até os atuais donos das corporações e conglomerados, que incluem necessariamente... as empresas de "comunicação", que ironia.
O povo é inculto mesmo nas camadas consideradas educadas, mesmo entre os que conseguem um diploma de nível "superior". Grande parcela destes integra a classe média. Na maioria, deambulam na fronteira que separa o conhecimento mais aprofundado, sempre e necessariamente diletante, daquele meramente obrigatório à inserção no mercado de trabalho. Em geral, são os que mais facilmente são cooptados pela propaganda do "mercado", que é veiculada pelas vejas e jornais nacionais da vida. Isso porque são deslumbrados, são consumistas, admiram e adulam os ricos que os oprimem, desejam ardentemente serem identificados como "amigos" de poderosos, sempre que possível os adicionam em redes sociais (o contrário é bastante improvável, mas eles fingem que não percebem), deliram que integram a elite, temem ser equiparados aos pobres mais incultos do que eles e reservadamente sonham em se tornar os novos opressores. São os "homer simpson" do Bonner.
Nesse sentido, os verdadeiramente incultos, aqueles que pouco ou nenhum acesso tiveram à educação formal, muitas vezes demonstram uma sabedoria superior a desses fronteiriços, pois a dureza da vida torna suas visões de mundo mais realistas, mais "pé no chão".
Quanto aos que, de fato, estão um degrau acima na escadaria da cultura, creio que são de três espécies: os idealistas, os que se vendem e os que possuem interesse na miséria.
Os idealistas são sinceros em suas manifestações. Honestas intelectualmente mesmo quando equivocadas, suas falas representam o que de fato pensam. Formam fileiras à direita e à esquerda, mas têm em comum a utopia de uma sociedade mais digna e menos desigual. A diferença é de método. Os de direita acreditam que o crescimento da riqueza individual culminará na riqueza coletiva, bastando esperar o bolo crescer livremente, após o que a divisão tende a ocorrer naturalmente. Os de esquerda possuem pressa, pois sabem que a fome e a dignidade humana não podem esperar o tanto de tempo necessário para o crescimento desse bolo, que já tarda. Afinal, já se passaram cinco mil anos de civilização, durante os quais, sistematicamente, 1% da população se beneficiou dos restantes 99%, como nos conta Piketty em seu precioso livro.
Os que se vendem são isso mesmo: mercenários da intelectualidade. Seja por dinheiro, seja por fama, seja por ambas, sabem o que é certo, entendem o que a moralidade determina, mas o que interessa são os interesses que interessam, ou seja, os deles mesmos. Ególatras ou meramente egoístas, condenam o futuro coletivo em nome do eu-presente e, para isso, não respeitam sequer a própria biografia. Nenhum caráter, nenhum princípio, nenhum escrúpulo, só dinheiro e fama. Alguns agradam tanto aos patrões que são premiados com a indicação para alguma entidade jurídica ou literária de renome, e posam pomposamente com seus bigodes ao lado de outras celebridades do mesmo naipe; outros, provavelmente acometidos pela síndrome de estocolmo, de torturados pelo sistema, viram seus fieis empregados e seguidores da cartilha conservadora. São os vira-latas da cultura, prontos a aceitar caninamente qualquer lixo que os alimente.
Por fim, existem os que possuem interesse na miséria. São pouquíssimos, não mais do que algumas centenas no mundo todo. Dominam todos nós, inclusive os presidentes dos países mais poderosos do mundo. A manutenção da miséria e da ignorância é parte essencial de seus planos, pelo mesmo motivo que os Morlocks alimentavam os Elois. Esses são movidos pela lógica dos predadores. Não odeiam o populacho, é que eles são a sua presa, o seu alimento, a sua fonte de poder.
Outra sensação que tenho é de que os jovens manifestantes de 2013 erraram feio o alvo. Ajudaram a eleger o pior parlamento brasileiro de todos os tempos. Inacreditavelmente, pouco mais de um ano após o quebra-quebra de junho de 2013, nossa saudada primavera tupiniquim, o conservadorismo político, responsável por tudo o que eles condenavam nos protestos, não somente foi reeleito, como reforçado. O retrato vil desse parlamento ficará na memória para sempre: os "pelo meu marido", "pela minha esposa", "pelos meus filhos", "pela rapariga que eu sustento em outro bairro", envergonharam toda a nação. Petistas e antipetistas se viram unidos pelo vexame após essa votação infame. A canalhada mostrou a sua cara.
E, por fim, uma intuição: a religião é cúmplice desse estado de coisas no qual os encontramos. As autoridades religiosas resolveram pôr fim a uma convivência saudável com a política, que já vinha de muito, convivência que se fundava em um mandamento básico e simples: o estado é laico, política e religião não se misturam. Em busca de negociatas, de sinecuras ou de implementação de políticas conservadores e obscurantistas, as religiões, especialmente as pentecostais, deram de promover seus próprios candidatos ao parlamento e ao executivo. Na última eleição, foram eleitos 52 deputados representativos dos interesses evangélicos. Isso representa mais de 10% da representação parlamentar, o que é um perigo para a civilidade. Devemos nos lembrar que a liberdade de religião, inclusive não professar nenhuma delas, é um avanço civilizatório extremamente valioso e isso somente foi possível com a saída da igreja da política institucional. No passado, valores religiosos eram impostos a todos, sob pena do crime de heresia e condenação à morte. Fico imaginando o que um evangélico diria se fosse obrigado a cumprir alguma ação com origem no candomblé ou na umbanda, como, por exemplo, um feriado do Dia da Pomba Gira, a padroeira da cidade ou do estado, ou se tivesse que permanecer numa repartição pública que ostentasse a estátua de Zé Pilintra ao invés de um crucifixo na parede.
Assim como Woody Allen, pretendo morar no futuro por um bom tempo. Por conta disso, sempre desejei sucesso a todo e qualquer governo, mesmo os que não receberam meu voto. Não se trata de capitulação, mas de republicanismo e democracia. Democracia não se consolida pela vitória através do voto, mas em saber perder pelo voto. Faltou isso a grande parte de nossos eleitores: saber perder, aguardar a próxima eleição. O resultado dessa insanidade: retrocedemos décadas.
E o que resultou dessa luta insana? Bem, se o impeachment passar, entrará o Temer, que está envolvido em denúncias de corrupção na operação Lava-Jato. A Dilma, como todos sabemos, não consta de nenhuma denúncia nesse processo ou em qualquer outro que apure corrupção. Acusaram o PT de aparelhamento do estado, não é mesmo? Pois o Temer já está loteando os ministérios em busca da tal governabilidade. Os convidados são as figuras políticas de sempre, metidas em falcatruas até o pescoço. Possivelmente haverá um refluxo no combate à corrupção, o próprio Sérgio Moro já fala em pôr fim ao processo. Claro, seu trabalho, que não era combater a corrupção, já está feito. E o que volta à agenda política? Isso mesmo: inibir aposentadorias, reduzir direitos trabalhistas, privatizações (inclusive da Petrobras), abertura ao capital estrangeiro (inclusive de petróleo e empresas de comunicação). Enfim, a agenda fracassada do neo-liberalismo do PSDB está de volta.
Dizem que somos um povo sem memória, não acredito que tenham razão. Mas, do que falávamos mesmo? Hum... ah, sim, lembrei...
Então, fica assim: sai o PT e tudo fica como dantes, com corrupção galopante, mas silenciosa e sem as manchetes escandalosas diuturnas, sem as operações da Polícia Federal e, quem sabe, com um novo Engavetador Geral da República, como costumava ser e era tão bom, não é mesmo?

Como disse no início, estou calmo, estranhamente calmo...

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