quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Os “puxadinhos” éticos que sustentam Bolsonaro


Bolsonaro compareceu à Assembleia Geral da ONU como o único governante dos países do G20 que confessadamente não tomou vacina contra o coronavírus. Uma vergonha que manchará a história do Brasil. Não fosse presidente do Brasil, ele sequer desembarcaria em Nova Iorque, sede da ONU. A cidade exige comprovante de vacinação para o ingresso em todos os espaços fechados, como museus, bibliotecas e teatros. Claro, não seria isso que perturbaria Bolsonaro. É impensável imaginá-lo contrariado por ser impedido de visitar ambientes culturais como esses. A falta de acesso às coisas mais mundanas e superficiais é que de fato o aborrece. Coisas como não poder fazer o que quiser, como quiser e quando quiser ou, mais pateticamente, ser impedido de entrar no restaurante de sua escolha. Em Nova Iorque a lei exige o comprovante também para entrar em restaurantes. Como resolver isso? Afinal, ele e sua comitiva precisam comer. Problema resolvido: basta se sujeitar a consumir qualquer coisa que encontre disponível pela frente, como fazem ratos e baratas, por exemplo, e ainda alardear que faz isso por humildade. É mentira, todos sabemos, mas também sabemos que ele nunca se importou em assumir compromissos sérios num dia e descumpri-lo no dia seguinte, com a cara mais lavada do mundo. “Eu nunca fui contra a vacina”, já disse, sem nem piscar os olhos.

    Ocorre que, no decorrer de sua vida, Bolsonaro teve a benção de sempre encontrar alguém disposto a passar pano em seus ilícitos e fanfarronices. No caso de Nova Iorque, esse alguém surgiu na figura do dono de um restaurante brasileiro em Nova Iorque chamado Fogo de Palha ou algo assim, não lembro bem, pois nunca nele estive e certamente nunca estarei. Disposto a dar um “jeitinho” para livrar Bolsonaro do rigor da lei que proíbe o estabelecimento de servir não-vacinados, o Fogo de Palha criou um “puxadinho” externo, na calçada, inexistente até então, com o propósito de servir Bolsonaro e comitiva. Governantes de outros países, principalmente os de economia gigante como o Brasil, cientes do valor simbólico que encerram em si como representantes máximos de seus países, jamais aceitariam esse “jeitinho”. Seguem estritamente o protocolo para evitar o achincalhamento da imagem do estadista, pois trata-se de escárnio que atinge mais pesadamente, não o plantonista no poder, mas o país que representa. Bolsonaro, porém, é como o escorpião da fábula: não consegue evitar os impulsos da própria natureza. Nunca se lembra de que é o presidente do Brasil e sempre age como Bolsonaro: sem educação, sem gentileza, sem refinamento, sem cultura, sem preocupação com o outro e sem preocupação com nada que não seja ele, um parente, um amigo ou um associado. Essa é, na verdade, a essência altamente narcisista do bolsonarismo: tudo é do meu umbigo e se sobrar um pouquinho é dele também. Creio profundamente que somente pessoas afetadas por esse tipo severo de narcisismo são capazes de incorporar o espírito do bolsonarismo.

    A atitude do restaurante brasileiro é uma metáfora perfeita para descrever a relação de parte significativa das instituições brasileiras, públicas e privadas, com Bolsonaro. Assim como o Fogo de Palha, tais instituições deturpadas parecem dispostas a se alimentar de qualquer “podrão” que apareça pela frente e comê-lo com as mãos, de pé, na rua mesmo, junto com a poluição, aceitando uma possível indigestão, desde que esse seja o preço a pagar pela sustentação da pantomima que representam: a farsa de um capitalismo ultraliberal insensível às classes baixas, preocupado somente em acumular cada vez mais, mas que se coloca na condição de tábua de salvação para os desfavorecidos contra o comunismo e contra a degeneração moral.

    São várias as instituições dirigidas por gente privilegiada ávida por construir “puxadinhos” de natureza ética, retórica e financeira para tornar Bolsonaro apetecível de modo a enfiá-lo goela abaixo do povo brasileiro, assim garantindo a perpetuação de lucros e privilégios. A história desses “puxadinhos” éticos favoráveis a Bolsonaro, destinados a suavizar seu discurso irracional ou livrá-lo dos diversos ilícitos que praticou ao longo de sua carreira pública, vem de longe no tempo. O primeiro deles quem cometeu, ao que parece, foi o Superior Tribunal Militar (STM). Em 1987, Bolsonaro foi acusado de planejar a operação “Beco sem Saída”, a saber, ataques terroristas com o objetivo de explodir bombas de baixa potência em unidades militares a título de protesto contra os baixos salários militares. No inquérito militar, ou Conselho de Justificação, como o Exército o denomina, Bolsonaro foi condenado por unanimidade, ou seja, três votos favoráveis e nenhum contra, sendo expulso da corporação. Foi salvo, porém, pelo “puxadinho” do STM, que, por 9 votos a 4, julgou contra a prova dos autos (havia duas perícias confirmando que a letra e os croquis do atentado terrorista partiram do punho de Bolsonaro) e o livrou da expulsão. Tudo tem limites, porém. O exército o rejeitava. A solução foi não devolvê-lo à tropa, tendo sido reformado. O problema é dos civis, devem ter pensado. Um detalhe: Bolsonaro, na ocasião, assinou um documento reconhecendo ter sido desleal com as forças armadas brasileiras. Curioso caso de um comandante-em-chefe que, no passado, confessadamente foi desleal com a tropa. Coisas dos “puxadinhos” éticos: além de não fazer sentido no âmbito do coletivo, um dia podem se voltar contra a instituição pusilânime oportunista que os cria.

    É preciso repisar isso: o “puxadinho” do STM inocentou, contrariando a prova dos autos, um militar acusado de planejar terrorismo dentro dos quartéis; esse desleixo institucional possibilitou a alteração da visão popular sobre ele, permissiva da construção de uma carreira política que se pautou, inclusive, no falso discurso de combate aos terroristas, relacionado a pessoas que nunca foram formalmente acusadas dessa prática, enquanto ele, sim.

    A partir do “puxadinho” do STM, diversos outros se seguiram, sempre com a finalidade de amenizar o discurso e a ação de uma pessoa que jamais tentou, ele próprio, suavizar o alcance e a dimensão do que fala e faz. Vale repetir: Bolsonaro nunca tentou enganar ninguém quanto à própria monstruosidade; esse trabalho foi realizado, à sua revelia, pelos “puxadinhos” institucionais. Ao longo do tempo, tais “puxadinhos foram sendo rotineiramente praticados por julgadores, que, por interesse ou covardia, deixaram de puni-lo quando possível. Também pela imprensa, que dourou despudoramente o perfil de um político que a vida toda, durante décadas a fio, expressou um discurso de violência, antidemocrático, elitista, contra as diversas desigualdades (sempre classificadas como “mimimi”), com histórico de corrupção (as “rachadinhas”) e sabido envolvimento em milícias criminosas. Beneficiou-se, e ainda se beneficia, dos “puxadinhos” do bloco parlamentar que integrou a vida toda, o “Centrão”, um bando disforme, sem fidelidade partidária alguma, desprovido de consciência política, formado por políticos interessados puramente em aumentar o próprio patrimônio e o de amigos, e que domina a política nacional desde o fim do regime militar. O “novo”, na eleição de 2018, veio representado por um político do Centrão, grande ironia. Há, ainda, os “puxadinhos” dos empresários, seres que, em grande medida, possuem um certo constrangimento em ser brasileiros e correm para obter passaporte americano ou europeu sempre que podem, com isso demonstrando uma falta de orgulho nacional que explica bem porque pouco se interessam pelo povo e pelo destino da nação, mas, antes, pela satisfação dos próprios e mais imediatos interesses, sendo exemplo perfeito disso um sujeito asqueroso, dono de lojas, que celebra ícones de outro país, pessoa cujo maior problema nunca foi ser desprovido de cabelos, mas de patriotismo verdadeiro, de preocupação com o próprio povo e, portanto, de caráter e de humanidade.

    Os “puxadinhos” éticos sustentaram e ainda sustentam a sobrevida política de Bolsonaro. Péssima notícia para os que desejam uma terceira via, pois dependem essencialmente de se tornarem uma “segunda via”, ou seja, de uma eleição sem Bolsonaro ou sem Lula, para que enfeixem a condição de “anti” (antibolsonaro ou antiLula) e tenham alguma chance de vitória.

    Sem Lula é bastante difícil. As condições que tornaram possível o lawfare em 2018 não existem mais. Tudo é possível, mas a chance maior é de que não se repita: a elite brasileira voltou a viajar e está embaraçada com o que permitiu no passado recente.

    Quanto a Bolsonaro, não há, ainda, no momento, ambiente político para excluí-lo da eleição de 2022. Todos os “puxadinhos” éticos estão funcionando, a começar pelo presidente da Câmara, que decidiu não levar o assunto impeachment ao plenário, não importa o que ocorra. Não se vê vontade política no TSE ou no STF para impedir o atual presidente de tentar a reeleição. Por ora, pertence ao mundo do desejo as previsões de impeachment, cassação de chapa, denúncia de crime com afastamento ou mesmo renúncia à candidatura. Essa última previsão, então, é a mais distante: que potencial criminoso deixaria de tentar, por todos os meios, retardar o andamento dos procedimentos criminais contra si ou seus amigos e familiares? É possível? É, mas pouco provável. Ele se candidatará, se deixarem.

    Ao que parece, salvo mudança gritante no cenário atual, Bolsonaro e Lula disputarão o segundo turno em 2022.

    A presença ou a ausência dos “puxadinhos” éticos, principalmente os praticados pela imprensa, será determinante no resultado da eleição.

    Durante o período eleitoral, quem escolherão como o “mal menor” em 2022?

    Um doce para quem adivinhar.

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