terça-feira, 25 de junho de 2013

O falso dilema sobre a PEC 37


Curiosamente, o povo está indo às ruas com menos convicção para exigir saúde e educação de qualidade, do que em prol de uma duvidosa prerrogativa para o Ministério Público: o de investigar crimes.
Supostamente, entendem os manifestantes não fazer mal que duas instituições governamentais possuam a mesma atribuição, Polícia e MP, em evidente superposição. Talvez pensem assim por imaginar que a Polícia é corrupta e o MP não, de modo que os políticos corruptos terão uma vida mais árdua se for o MP a investigar.
Embora seja correto afirmar que casos de corrupção são mais comuns na polícia, isso, porém, decorre de um prosaico motivo: é a polícia que investiga quase cem por cento dos crimes praticados no país. A quantidade torna mais fácil a percepção da corrupção.
Além disso, há um outro elemento: embora a Polícia Militar não seja judiciária, ou seja, não participe da investigação criminal, é com ela que as pessoas lidam no dia-a-dia, inclusive participando das pequenas corrupções praticadas por dirigir embriagado, porte de arma e coisas afins. Apesar de partícipe do crime, na condição de corrompedor, o comum do povo fica indignado por ter desembolsado dinheiro em virtude de um ilícito visto por ele como "pequeno", "sem importância". A exigência ética é somente para os outros. Em sua visão distorcida e preconceituosa, "a polícia tem que estar subindo morro atrás de bandido e não perseguindo um cidadão trabalhador". Claro que o cidadão poderia ter se negado a pagar propina e aceitado o cumprimento da lei, com encaminhamento à delegacia e, quem sabe, prisão ou multa. Indignado sem razão, parte para a generalização barata de que toda a polícia é corrupta.
Aliado a isso, a população pouco sabe sobre o MP e sobre os casos de corrupção que envolvem essa instituição. Há pouco ouviu-se falar de licitação feita pelo MP e dirigida em favor da Apple, para aquisição de tablets. Quem quiser acreditar em interesse na tecnologia, e não em dinheiro por trás dos panos, que acredite. Quem quiser acreditar que o bilionário Daniel Dantas foi excluído do processo do mensalão por convicção do Procurador Geral da República, que é do MP, que acredite.
O juiz federal João Bosco Costa Soares da Silva, do Amapá, acusou o MP local de “nebulosa e obscura utilização de recursos públicos de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado entre a empresa MMX – de propriedade de Eike Batistas e os membros do Ministério Público Estadual e Federal, no valor de R$ 8 milhões”.
Existem outras acusações de corrupção contra o MP.
Não é caso de acusar o MP, como instituição, de ser corrupta, mas de salientar que se trata de uma instituição como todas as outras, em nada diferindo das demais quanto à possibilidade de ser envolvida em corrupção. Como qualquer instituição humana, o MP é formado por pessoas honestas, mas também pelas corrompíveis e corrompedoras.
Aparentemente, o mote para esse movimento popular contra a PEC 37 é a vontade de punir os agentes públicos corruptos. Um nobre objetivo, sem dúvida. Contudo, é bom lembrar que a maior parte desse tipo de investigação é de competência da Polícia Federal e, até onde se sabe, a Polícia Federal realizou inúmeras operações, todas batizadas com nomes originais, como Sanguessuga, Satiagraha, Cavalo de Tróia e por aí vai, justamente com esse objetivo. Se dependesse exclusivamente da Polícia Federal, portanto, muitos agentes políticos estariam presos.
Muitas vezes, todavia, quando essas operações resultariam em prisões de pessoas importantes, o próprio MP ou a Justiça conseguia localizar alguma "falha" na investigação que invalidava totalmente as provas produzidas. Ou seja, a polícia cumpriu ou tentou cumprir o seu papel e os criminosos somente estão soltos, ou por deficiência no aparelhamento policial, ou por decisões equivocadas ou mal-intencionadas do próprio Ministério Público ou da Justiça. A título de exemplo, tomem-se os casos do mensalão do PSDB em Minas Gerais e da Operação Satiagraha, onde se viu livre um dos principais envolvidos, o bilionário banqueiro Daniel Dantas.
Deficiência no aparelhamento da polícia, todavia, deve ser resolvida com previsão orçamentária, de forma nenhuma com transferência de atribuições para outro órgão.
O que o país precisa não é de um MP que, excedendo a sua função precípua, já mal e mal cumprida nos Estados, também se veja na contingência de substituir a polícia nas investigações. A necessidade pública envolve um MP que cumpra o seu papel articulador do processo criminal, atuando de forma isenta e disposto a corrigir os defeitos da polícia. É perigoso arriscar a possibilidade de o MP vir a ser contaminado pelos mesmos vícios que hoje contaminam a polícia.
Nas palavras do eminente constitucionalista Luis Roberto Barroso, recém-nomeado para o STF:
Sem a pretensão de uma elaboração sociológica mais sofisticada, e muito menos de empreender qualquer juízo moral, impõe-se aqui uma reflexão relevante. No sistema brasileiro, é a Polícia que atua na linha de fronteira entre a sociedade organizada e a criminalidade, precisamente em razão de sua função de investigar e instaurar inquéritos criminais. Por estar à frente das operações dessa natureza, são os seus agentes os mais sujeitos a protagonizarem situações de violência e a sofrerem o contágio do crime, pela cooptação ou pela corrupção. O registro é feito aqui, porque necessário, sem incidir, todavia, no equívoco grave da generalização ou da atribuição abstrata de culpas coletivas. “Pois bem: não se deve ter a ilusão de que o desempenho, pelo Ministério Público, do papel que hoje cabe à Polícia, manteria o Parquet imune aos mesmos riscos de arbitrariedade, abusos, violência e contágio”.
Vale lembrar que esse papel de agente da investigação foi atribuído ao MP na Itália, por ocasião da Operação Mãos Limpas. Refletindo sobre as palavras de Barroso, veja o que sustenta o Prof. José Afonso da Silva:
"A esse propósito, não é demais recordar o exemplo italiano. O Ministério Público brasileiro ficou muito entusiasmado com a atuação dos Procuradores italianos na chamada operação “mãos limpas”, que teve inequívoco sucesso no combate aos crimes mafiosos. Como se sabe, na Itália vigorava até 1989 o juizado de instrução, quando foi suprimido, e os poderes de inquérito e de investigação concentraram-se nas mãos do Ministério Público. Essa transformação proveio da legislação anti-máfia e teve impacto imediato, mas não tardou a surgirem os abusos de poder. O Procurador Di Pietro, o mais destacado membro do Ministério Público de então, teve que renunciar ao cargo em conseqüências das denúncias de desvio de poder; assim também se deu com Procuradores na Sicília. Então, a suposição do parecer do Prof. Luís Roberto Barroso é algo que a experiência já provou."
Por conta de tudo isso, afigura-se imprescindível que o MP mantenha o seu papel histórico, não de mero acusador, mas de fiscal da lei. Quando a polícia investiga, é o MP que contém os abusos que eventualmente são praticados. Se for o próprio MP a investigar ele passa a ser sócio da própria investigação e dificilmente irá reconhecer um erro ou algo pior, até por vaidade intelectual. Assim, se houver abuso, quem o conterá?
Em princípio, num Estado de Direito, quem investiga não pode acusar e quem acusa não pode investigar, sob pena de falta de isenção de ânimo, de impessoalidade.
Falando sobre a PEC 37, que apoia, assim se manifestou o advogado Marcos Costa, presidente da OAB-SP:
"A PEC não quer restringir os poderes do Ministério Público, cujo papel é relevantíssimo e está claramente estabelecido pela Constituição Federal de 88. Na verdade, propõe restabelecer a imparcialidade na fase de investigação, segundo a qual a Polícia Judiciária (Civil e Federal) investiga, o Ministério Público denuncia, a Advocacia faz a defesa e o Judiciário julga". Ainda segundo o advogado "quem acusa não pode comandar a investigação, porque isso compromete a isenção, quebra o equilíbrio entre as partes da ação penal".
Um detalhe importante, que não ser posto de lado, é que as polícias civil e federal são treinadas para investigar, enquanto o MP não. Basta ao candidato a promotor possuir diploma de bacharel em Direito, o que não qualifica ninguém para a investigação criminal.
Cabe uma última reflexão sobre uma situação hipotética: se alguém é preso pela polícia, com acusações falsas, o fato pode ser denunciado ao MP que certamente tomará as providências adequadas para corrigir a arbitrariedade; todavia, se ante as mesmas circunstâncias, ele é preso a partir de investigação iniciada e dirigida pelo MP, a quem se poderia recorrer? À Polícia, que está indiretamente subordinada ao MP? Ao Judiciário, que, em princípio, somente pode falar nos autos da própria ação penal patrocinada pelo MP e que, ademais, possui laços de afinidade com o MP? Ao próprio MP, que, como os demais órgãos, costuma agir com espírito de corpo, protegendo seus pares? Seria interessante uma profunda reflexão sobre isso antes de ser contra PEC 37.
Por fim, deve ser lembrado que promotores, assim como os juízes, não possuem mandato e não são eleitos, ou seja, não é possível retirá-los do poder se excederem desse poder de investigação que querem lhe atribuir.
No mínimo, vale uma reflexão.

2 comentários :

  1. Assunto velho que só li hoje. Diz coisas que eu, sem ser advogada nem nada, já imaginava. Agradeço portanto pelos esclarecimentos.

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    1. Obrigado, DePaula, por visitar o blog. De fato, o post é antigo, da época em que o assunto estava quente. Ficaria honrado se você comentasse um post mais recente. Abraços. Marcio Valley.

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