segunda-feira, 9 de março de 2015

A encruzilhada do futuro




O futuro nasce a partir do presente entendido como o ápice do passado, vale dizer, o arcabouço do futuro repousa sobre os alicerces do presente, construídos que foram no passado. A utilização das ferramentas históricas herdadas pelo presente constituem a causa necessária do futuro que se projeta como ideia, pois possibilitam iniciar a obra que, em potência, representa o futuro que concretamente poderá vir a ser experimentado pela civilização.
Enfim, para simplificar esse raciocínio que já está ficando tortuoso, não é possível pensar num futuro a partir do nada. Do nada, nada vem, a não ser no caso único e excepcional da criação divina. Fora essa possibilidade teológica, o futuro sempre emergirá de suas bases históricas, ainda que sob a forma de contradição.
Óbvio? Claro. Ainda assim essa relação entre presente e futuro parece não ser compreendida por determinada parcela das pessoas. Ou ao menos fingem não compreender.
Não há dúvida de que, frente à dimensão da devassidão ética dos usos e costumes políticos do presente, o desejo, sensato, de distanciamento é inescapável. Ninguém quer estar próximo do odor desagradável do esgoto. De certa forma, o antigo discurso sectário do PT, quando oposição, que fazia tremer suas bases à mera menção de coligações partidárias, refletia essa vontade um tanto infantil de afastamento da podridão. Infantil porque somente a proximidade da podridão permite a sua dissolução, não cabendo ao homem político se afastar de um problema político que merece enfrentamento.
Ocorre que é impossível a formação de uma nova sociedade a partir do nada. Nem mesmo revoluções que transformaram profundamente a sociedade, como a bolchevique, foram capazes, ou tiveram a audácia, de partir do zero político absoluto. Não há dúvida de que através de uma revolução as modificações políticas possam ser realizadas num ritmo mais célere, criando-se novos atores e fatores políticos que não seriam aceitos se mantido o status quo ante. Todavia, tais revoluções possuem o péssimo hábito de gerar mortandades e sacrifícios dispensáveis à luz da razão humana, além de, um sem número de vezes, acabar por se voltar contra o povo revolucionário, sendo exemplos disso as revoluções francesa e russa.
Por conta dessas vicissitudes revolucionárias malignas, um pensamento politicamente mais maduro e racional, mais humano mesmo, tenderá a compreender que o melhor meio de renovar a política ocorre num quadro de gradualismo, vale dizer, a partir da introdução progressiva de novos elementos políticos que irão atuar em conjunto com a prática política mais antiga e que já se encontrava em andamento. Uma revolução gradualista, por assim dizer. Alguns irão chamar de realpolitik.
Não se pode perder de vista que o ser humano é extremamente ambíguo, sendo simultaneamente inovador e conservador. Se encanta com novidades (daí a atração pelo consumo superficial), mas teme perder as bases onde põe os pés (donde decorre a tendência dos eleitores de reeleger seus governantes).
Essa revolução gradualista consta da agenda do PT enquanto governo, buscando conciliar o seu antigo projeto revolucionário com as possibilidades reais que a conjuntura política lhe permite. Pretende conquistar fatias de revolução social, ao mesmo tempo que tenta evitar um confronto mais sério que impossibilite qualquer conquista. É um dilema moral e não há solução certa, nem errada.
Ainda quando o atual governo silencia em relação a algumas acusações e também relativamente a algumas posturas incompatíveis de partidos ditos “aliados”, o que aparentemente está por trás disso é uma estratégia de não-confronto. Difícil dizer se é a melhor estratégia. O tempo dirá.
Essa estratégia de não-confronto pode até se revelar eventualmente a mais sensata, do que não decorre que seja capaz de imunizar o governo das tentativas de desestabilização pelo stablishment. Afinal, assim como o escorpião picou o sapo que gentilmente lhe atravessara o riacho, isso faz parte da natureza dos conservadores liberais, que jamais irão concordar pacificamente com a introdução de rudimentos de socialismo e de acirramento da democracia na política. Para eles, trata-se da velha história de enfiar o dedo no buraquinho da represa para não permitir que aos poucos o pequeno orifício, por força da pressão, se amplie até o ponto do estouro do reservatório.
O Brasil vive esse momento histórico de revolução gradualista em sua fase mais aguda. E é exatamente aqui que a população deve se decidir sobre o futuro que deseja. Há espaço para uma utopia ou só nos resta aguardar a tragédia distópica? Ou, por um outro lado, a mais forte opção partidária do momento é capaz de preencher esse espaço utópico?
Todo futuro planejado é apenas uma possibilidade de futuro, jamais uma certeza, caso contrário se trataria de determinismo e nada teríamos a fazer, bastaria aguardar sua inevitável chegada.
Contudo, não há dúvida de que as ações do presente são capazes de influenciar o futuro, ainda que de forma não determinante. Em outras palavras, se alguém começa a colocar um tijolo em cima do outro hoje, é muito possível que, um dia, a casa esteja construída. Isso jamais ocorrerá se tijolo nenhum for manipulado.
A política econômica é prenhe dessas intencionalidades de futuro. Tanto keynesianos, como monetaristas, tanto os adeptos do estado de bem-estar social, como os do laissez-faire, na pureza de suas inclinações, perseguem um ideal de sociedade futura mais justa e igualitária. A questão que se coloca é se todas são capazes de fornecer o ferramental necessário para produzir esse ideal.
Para tanto, importa, seja qual for o tipo de filosofia política econômica que se adote, indagar quais seriam as ações políticas práticas que, numa perspectiva lógica e racional, se adotadas, mostrariam-se efetivamente capazes de orientar a possibilidade de futuro para uma sociedade mais libertária, mais justa, mais equânime, menos neurótica?
Poucos discordariam de que tais ações passam, primacialmente, por uma nova forma de organização social no que concerne à educação, à cultura, à saúde (inclusive em seu aspecto de saneamento básico), à segurança pública, à segurança alimentar, à mobilidade urbana, à segurança ambiental, à energia limpa e renovável, à redução das desigualdades entre etnias, entre gêneros e de orientação sexual. Todos esses elementos considerados como fatores de geração e manutenção da dignidade humana.
De fato, muito pouco tem a ver com crescimento econômico, PIB ou renda, em sentido estrito.
Uma renda alta, na verdade, somente é relevante se considerado o seu aspecto de meio de aquisição dos elementos geradores da dignidade humana, de modo que perde muito de seu objetivo se o acesso a tais fatores independer de dinheiro. Como exemplo, ainda tímido, podem-se citar os países nórdicos, que possuem carga tributária bastante elevada, alguns com quase 50% do PIB (Dinamarca), o que é fator de redução da renda, porém não se vê o povo reclamando, como consequência óbvia de que o cidadão não é obrigado a pagar médicos, hospitais, escolas e segurança particular.
O Brasil possui carga tributária de cerca de 35% do PIB, que é alta em relação aos serviços públicos que fornece, porém é insuficiente para atender às demandas da população (inclusive às da classe média, que gostaria de dispôr de escolas e hospitais públicos para se livrar do plano de saúde e das mensalidades escolares).
E falar em tamanho da fatia tributária é falar no dimensão do espaço público, talvez o maior exemplo de escolha de opção política do presente geradora de profundas repercussões no futuro.
Que futuro desejamos? O do modelo neoliberal, do estado mínimo, sem escola e sem saúde publicas, praticamente sem iniciativas de relevo no âmbito do capital público? Ou o projeto de social-democracia, com ampliação do tamanho do estado e de participação do seu capital na economia?
O cidadão, principalmente o que integra a classe média, não sem razão, irá colocar a questão da corrupção e da eficiência do governo nesse dilema. Por que contribuir mais para encher os bolsos de políticos corruptos? Para que maior tributação se, a final, a gestão dos gastos é ruim e acaba não resultando em serviços públicos melhores?
Não resta dúvida de que a corrupção, presente indiscutivelmente em todos os governos brasileiros, deve ser combatida seja lá qual for o partido que esteja no poder. Da mesma forma, a eficiência da gestão pública deve ser encarada como um projeto de estado, não de governo.
Aqui, a análise do projeto de futuro impõe que o eleitor mais atento avalie a história recente da política e dos governos e opte, dentre as várias possibilidades partidárias, aquela que lhe pareça mais comprometida com o combate à corrupção e com a eficiência de gestão.
Todavia, esses questionamentos não dão conta de resolver um problema inescapável: o modelo neoliberal não é e não será jamais capaz de produzir a sociedade digna que todos desejam. Isso porque implica inexoravelmente a concessão de liberdade quase total ao capital para evoluir por si próprio, para ditar suas próprias regras, sem responsabilidade por medir as consequências dessa evolução para a sociedade. Curiosamente, não se imagina qualquer sociedade na qual as pessoas físicas que a integram pudessem autorregular-se. Seria um despautério. Facilmente se imagina a bagunça que seria se não houvessem leis estatais regulando os comportamentos. Por que conceder esse privilégio às pessoas jurídicas?
Livre totalmente, o capital sempre irá privilegiar o rentismo em detrimento da produção e o lucro em prejuízo do emprego. Não se perca de vista que o sonho de todo capitalista, honesto ou desonesto, é tornar-se rentista, colocando o dinheiro para trabalhar em lugar dele. Na verdade, talvez seja um sonho humano. Afinal, para que produzir se a bolsa de valores, bem gerida por uma corretora, com risco mitigado pela distribuição em várias modalidades de investimento, permite ganhos maiores, sem tanta dor de cabeça? Para que trabalhar se é possível viver da renda de aluguéis, juros ou dividendos?
O rentismo constitui-se na propriedade completamente desvinculada de função social e de interesse público. É o privatismo e a liberdade econômica conduzidos à sua expressão máxima: lucrar sem compromisso com a ética e com o desenvolvimento civilizatório.
Os Estados Unidos, e os crash's de que vez ou outra padecem, são a prova viva disso. A “abundância americana” deixa ao léu, na miséria mesmo, pelo menos quinze porcento de sua população, ou seja, cerca de cinquenta milhões de pessoas, quase uma França inteira. E uma fatia ainda maior, que inclui parte da classe média, não possui amparo social e médico algum. Além disso, o ensino universitário é quase totalmente particular, o que privilegia a elite, salvo um ou outro pobre que alcança a sorte de ser bom em algum esporte e recebe bolsa de atleta.
Como mais uma demonstração de “desprendimento” do capital sob o neoliberalismo, grandes empresas passaram a comprar seguros de vida em nome de seus empregados sem que eles soubessem. Beneficiário: a própria empresa. Em resumo, as empresas lucravam com a morte de seus empregados, deixando suas famílias ao relento. Algumas empresas reclamavam, em atas, que os “investimentos” não estavam alcançando as metas previstas. Em outras palavras, os empregados não faleciam tanto como era previsto e o negócio não alcançava a lucratividade esperada.
Nada poderia caracterizar melhor o espírito do neoliberalismo: o lucro a partir da vida ou da morte do trabalhador.
A sociedade brasileira, hoje, não está em melhores condições sociais do que as da americana, isso é inegável. O problema é se pretende estar um dia. O nosso melhor projeto de futuro é copiar a sociedade americana?
É evidente que não se fala, aqui, da vontade arrogante de poder geo-político, de se impor imperialmente sobre as demais nações. Se for esse o caso, o ideário econômico americano deve ser seguido à risca.
Fala-se de sociedade humana, saudável, feliz, realizada. Fala-se de uma sociedade sem ilhas de prosperidade cercadas por oceanos de miséria, sem condomínios de luxo, os repositórios de ricos, ao lado de guetos e favelas, a lixeira onde são jogados os pobres.
Uma sociedade sem locais inacessíveis para o pobre ou para o rico, na qual o rico não tema perder o Rolex e o pobre, sua dignidade.
No presente, discutem-se temas como bolsa-família, corrupção, Prouni, Mais Médicos, Fies, Minha Casa Minha Vida, com o desprendimento, a ingenuidade e a superficialidade de quem não vê relação alguma da ação política do presente com o tipo de sociedade futura que nos aguarda.
Reclama-se da educação, do custo de vida, do salário, da educação, da sáude, da segurança e outras demandas como sempre se reclamou de todos os governos anteriores. A conversa política mais aprofundada, porém, é tolhida, é solapada, pela banalização na discussão, pelo reducionismo da fulanização e pela irresponsabilidade no voto, circunstância que aliena o eleitor da sua condição de político e de seu potencial de reformador social.
Impõe-se, com urgência, a formação de uma consciência política que produza o vínculo mental entre o comparecimento a uma urna eleitoral e a escolha de um projeto de futuro.
Toda vez que tiver que comparecer a uma urna para escolher um mandatário político, compete ao cidadão se perguntar honestamente: que tipo de futuro eu desejo para mim e para quem amo? Quem tipo de político e de política se mostra capaz de alcançar esse resultado?
Para responder a essas indagações, o melhor a fazer é estudar o presente e o passado recentes.
Como quem dirige um automóvel, olhar para o lado e pelo retrovisor muitas vezes nos dá a segurança de continuar em frente, em direção ao nosso destino.
Que partidos e políticos privilegiam o capital e adotam o neo-liberalismo? Que partidos e políticos buscam uma sociedade mais digna e menos desigual?
Estamos na encruzilhada do futuro e essa é a pergunta a ser feita para decidirmos em que rua prosseguiremos nosso caminho.

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