segunda-feira, 23 de março de 2015

O capitalismo e os mortos de fome II

Críticos do socialismo costumam afirmar, como uma das mais fortes razões para o repúdio, que o socialismo real, aquele materializado principalmente nas experiências soviética e chinesa, normalmente é fundado em governos aristocráticos e no culto à personalidade, acabando por redundar num totalitarismo sanguinário, que mata milhões de pessoas para a manutenção do poder.
Não há dúvida quanto ao horror soviético. Stalin, sozinho, chacinou nove milhões de cidadãos russos. Tampouco cabe negar o maléfico comunismo chinês, com Mao Tsé Tung sendo responsável pela morte de setenta milhões de pessoas. De fato, ambos os regimes foram totalitaristas, marcado por cidadãos instados ao dever da vigilância recíproca e patrulhamento ideológico de uns em relação aos outros, causadora de intensa paranoia social, porém com o efeito de manter todos no direcionamento pretendido pelos camaradas governantes. Nessa situação, o sentido de pertencimento à comunidade se esvai,
restando o cidadão atomizado, preocupado exclusivamente em buscar, de forma egoísta, meios de sobreviver, ainda que à custa da delação do vizinho.
Não se pode negar a história. Claro que o defensor do socialismo dirá que as experiências soviética e chinesa são a degeneração da utopia socialista e que estão muito longe do socialismo em tese, defesa fragilizada pela ausência de experiência real que lhe dê sustento. Sinuca de bico para o socialista, pois essa experiência real paradigmática jamais existiu, dado que as condições materiais do surgimento do socialismo ainda não foram criadas. O capitalismo precisa atingir seu ápice, requisito fundamental e indispensável para o passo em direção à evolução social prevista por Marx. O futuro dirá.
Porém, parece faltar ao crítico do socialismo um visão mais abrangente da realidade capitalista. O defensor do capitalismo aparenta não perceber os vícios e defeitos da sociedade como um ônus do sistema que advoga. Em sua defesa, pode-se dizer que é, de fato, difícil para o elemento do conjunto obter uma visão da totalidade do conjunto que integra.
O fato, porém, é que o capitalismo também possui seus horrores.
A antiga divisão do mundo em capitalista, comunista e terceiro-mundista ruiu completamente junto com o Muro de Berlim. Hoje, o sistema capitalista reina soberano no mundo, possuindo como parceiro somente o terceiro mundo, que hoje deveria ser mais apropriadamente denominado de segundo mundo. Chamar de "parceiro" é um eufemismo, claro. O terceiro mundo é parceiro do capitalismo na mesma proporção em que o Brasil era parceiro de Portugal enquanto colônia.
Enfim, se há hoje comunismo no mundo, está restrito a países sem relevância geopolítica, como Cuba.
O único que seria potencialmente relevante, a China, não cabe mais na classificação. Possuindo economia francamente aberta, não pode ser considerado comunista.
À luz dessa nova hegemonia capitalista, um dos primeiros problemas que se apresenta ao observador com relação ao capitalismo, e que o aproxima da crítica ao socialismo, é que ele igualmente tende a formar uma elite governante, embora plutocrática e não, como no socialismo real (não no utópico), aristocrática.
O capitalismo está acima dos estados e dos interesses nacionais. A classe política que representa os países somente de forma subalterna e indireta pode ser afirmada como possuidora de algum poder de direção do capitalismo. O sistema, na verdade, é controlado, com mãos de ferro, por um número absurdamente pequeno de pessoas. Mais precisamente, cento e sessenta e uma pessoas determinam os rumos do capitalismo mundial, não somente como administradores dos maiores conglomerados do planeta, como também na condição de partícipes de grupos de política global ou de governos, como o FED (banco central americano), o Banco Mundial ou o FMI, assim orientando e dominando os grandes centros de decisão da política econômica.
Não, seria ótimo, mas não há qualquer equívoco no número. São apenas cento e sessenta e uma pessoas que mandam na economia mundial, tanto na área privada, como nos governos, segundo lista publicada pelo Censored 2014 da Seven Stories Press (link abaixo).
Essas pessoas dirigem instituições consideradas “grandes demais para falir”, o que lhes autoriza a plenitude em suas decisões, cientes que poderão fazer absolutamente tudo o que quiserem, arriscar qualquer projeto, experimentar toda loucura (como derivativos, subprimes, manipulação de câmbio e por aí), sem que disso decorra qualquer consequência pessoal ou para os conglomerados que representam. Na última grande crise que provocaram, por exemplo, os governos do mundo bancaram o prejuízo, temendo o chamado “risco sistêmico”. Perceba-se que investidores perdem dinheiro e grandes empresas quebram com as crises, mas isso faz parte do negócio capitalista. A elite dirigente jamais perde riqueza. Não se trata de informação privilegiada, mas de ciência prévia do fato relevante por ser o criador do fato. Os amigos, alguns, é que recebem informação privilegiada.
Dessa pequeníssima elite dirigente, cento e quarenta são homens e são brancos (87%), oitenta estudaram nas mesmas dez universidades (50%), setenta e dois são dos Estados Unidos (45%).
E não hesitam por um minuto sequer em adotar políticas que certamente causarão desemprego, miséria, fome e, inclusive, guerras.
Por conta da orientação dessa elite dirigente capitalista, a metade mais pobre da população global, três bilhões e meio de pessoas, possui menos de dois porcento da riqueza do planeta. Um bilhão, duzentos e noventa milhões de pessoas são consideradas miseráveis, vivendo em pobreza extrema, com menos de um dólar e vinte e cinco centavos por dia. Outros um bilhão e duzentos milhões de pessoas são consideradas apenas... "pobres", pois vivem com menos de dois dólares por dia.
A política capitalista é diretamente responsável por trinta e cinco mil pessoas mortas todos os dias. De fome. Um milhão e cinquenta mil pessoas morrem de fome todos os meses.
Assim como não se pode adotar o negacionismo em relação aos males do socialismo real, tampouco cabe negar os horrores do capitalismo. São doze milhões, setecentos e setenta e cinco mil pessoas que morrem de fome por ano.
Trata-se de um mal muito maior do que as doenças que mais matam no mundo. O câncer, por exemplo, mata cerca de sete milhões e meio de pessoas por ano. A aids cerca de um milhão e meio. O trânsito por volta de um milhão e trezentas mil pessoas. São meros espirros frente à fome gerada pelo império da lucratividade.
Como afirmado no início, Stalin foi responsável por cerca de nove milhões de russos mortos... só que em trinta anos. São cerca de trezentos mil por ano. Pois o sistema capitalista, apenas nos últimos vinte anos, permitiu a morte, por fome, se levarmos os números atuais (o que não é real mas permite uma dimensão histórica do impacto da miséria) de duzentas e cinquenta e cinco milhões de pessoas, pondo Stalin absolutamente no chinelo em matéria de mortandade.
Nesse período, nem tão longo assim, o capitalismo matou mais do que a Primeira Guerra Mundial (estimativa de dezenove milhões de mortos), a Segunda Guerra (sessenta milhões), Guerra do Vietnã (dois milhões) e todas as guerras modernas (Iraque, Afeganistão, Balcãs, etc). Na verdade, matou mais do que todas elas somadas.
Em todo o século XX, o tabagismo matou cem milhões de pessoas, cerca de um milhão por ano em média. O capitalismo, portanto, é bem mais intragável e daninho à saúde. Quase treze vezes pior, para ser mais exato.
E estamos falando somente das mortes por fome. As guerras, todavia, são produto direto das crises capitalistas e suas vítimas bem podem ser incluídas nessa soma como resultado de falhas do sistema.
A conta passaria, facilmente, de um bilhão e trezentos milhões de mortos em cem anos (repita-se: considerando-se o número atual de mortes por fome).
Se o sucesso de um sistema for medido pelo número de mortos que permite, o capitalismo está perdendo esse jogo... e de muito.
E todas essas milhões de pessoas morrem de fome todos os anos em função das diretrizes econômicas de apenas cento e sessenta e uma pessoas. O principal objetivo desses dirigentes, além de possibilitar uma acumulação inacreditável de riqueza, é dar conforto à porção da população, formada por cerca de um bilhão de pessoas, que lhe dá sustentação política. Trata-se de uma parcela da população que não é elite, nem é dirigente, gostando de se imaginar, porém, mais semelhante a quem está acima do que aos que estão abaixo dela. O que os dirigentes querem é que esse bilhão de pessoas tenha a ilusão de poder por terem a condição de adquirir o tablet de última geração, o modelo mais bacana de celular, o vestuário de marca, um automóvel diferenciado.
Trata-se da classe média, que, em grande parte, perde o sentido de pertencimento à comunidade, pois não se enxerga no favelado, agindo, assim, de forma atomizada, com preocupação praticamente exclusiva em buscar, de forma egoísta, a manutenção do seu status de sobrevivência, ainda que à custa da manutenção da miséria do vizinho pobre. Embora as condições sejam obviamente outras, esse comportamento é semelhante ao do cidadão aterrorizado pelo totalitarismo.
E parcela da população miserável, por sua vez, também de forma atomizada, reage ao terror totalitário da exclusão, convertendo-a em violência. Numa outra espécie de negação, esquece-se que o crime é uma espécie de guerra civil, deitando raízes no tipo de sociedade desigual que escolhemos. Condena-se a pessoa à fome e criminalizamos a tentativa de matar a fome, privilegiando a propriedade em detrimento da vida. Claro, é mais fácil explicar a violência na base da falha de caráter, da culpa do criminoso, como se essa culpa fosse uma espécie de criação divina, produzida a partir do nada.
Dizem que o capitalismo é o melhor sistema econômico possível de ser imaginado.
Pode ser, mas o fato inescapável é que, sob esse sistema, 243 (duzentas e quarenta e três) pessoas morreram de fome nos dez minutos que você gastou para ler esse texto (e o contador continua girando).
Dados extraídos da Wikipédia e de artigo nesse link: http://www.viomundo.com.br/denuncias/conheca-melhor-quem-a-economist-representa.html

3 comentários :

  1. Dados muito bem expostos e argumentados

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  2. revisionismo, esquerdismo burgues posmod capitalista... nos comunistas somos contra esquerdismos

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  3. Por que os países do continente Africano não se desenvolvem apesar de toda a ajuda externa? A abertura de mercado têm um efeito mais positivo do que o planejamento internacional financiado por impostos, que acaba por criar dependência e posterior miséria. Assim, as instituições inter-governamentais que você citou não representam o capitalismo, embora tenha razão em criticá-las. E Isso tudo não tem nada a ver com capitalismo. Pois capitalismo não é a burocracia internacional, nem existe ''política capitalista'', o próprio termo político contrasta com a palavra capitalismo. Tratar o capitalismo como culpado de eventuais mazelas é um erro de lógica e semântica.

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