quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Até que ponto aceitar a violência?

                                          publicado no portal de notícias GGN em 10/10/2018
É possível admitir o uso da violência como mecanismo de melhoria do ambiente social? Caso positivo, quem poderia ser considerado o titular natural de sua utilização? O policial, o juiz, o chefe do executivo? Escolhido o titular, qual o grau de utilização seria admissível a ele conceder para o uso da violência? A partir de que medida a violência exagerada contra o outro retira de nós a condição de humanidade?
Os institutos que normatizam o comportamento social dos seres humanos não foram criados a partir de ideias geniais surgidas do nada em mentes privilegiadas ou como revelações divinas lançadas pelos deuses através de seus representantes terrenos. Nada disso. Sem exceção alguma, foram as próprias pressões e contradições sociais que os fizeram surgir com o objetivo de tornar menos árdua a tarefa individual de conviver com os outros. Afinal, segundo Sartre, o inferno são os outros, querendo com isso dizer, não que os outros tornem nossa vida um inferno, mas que é sempre terrível ter de submeter a própria liberdade ao sentido coletivo de moralidade. Embora, segundo o filósofo, sejamos condenados a ser livres, já que apenas nossa vontade impede que façamos toda e qualquer ação ou omissão dentro de nossas possibilidades físicas, o fato é que o peso das consequências sociais previsíveis tolhe a opção volitiva. Ainda assim, somos livres, pois a escolha pelo medo das consequências é exclusivamente nossa. Os institutos mitigam essa sensação de inferno que a convivência provoca.

Mas, de que institutos estamos falando? Pensamos no império de uma Constituição escrita por representantes do povo, da democracia, da igualdade política entre ricos e pobres, dos direitos humanos, dos direitos e garantias individuais mínimos, do devido processo legal, da inexistência de crime sem lei anterior que o defina, da vedação ao abuso da autoridade, dos direitos sociais, dos direitos dos trabalhadores e tantos outros.
Esses institutos buscam impedir que os horrores vivenciados no passado se repitam. Já houve época em que seres humanos considerados do bem, religiosos fervorosos, de família e ótimos amigos mandavam para a fogueira mulheres que apenas se dedicavam a criar poções com ervas medicinais. Por longos períodos do passado e dentro do que a lei admitia, ricos podiam espancar, torturar ou matar seres humanos que fugiam dos feudos e se recusavam a continuar na servidão, além de, em alguns casos, terem o direito potestativo de desvirginar as filhas dos servos. Em momentos sombrios de nossa história, senhores da nobreza ou do clero exerciam poder absoluto sobre o povo, bastando uma simples palavra para trancafiar pessoas indefinidamente em calabouços. No alvorecer da Revolução Industrial, a exploração da mão-de-obra beirava o fisicamente impossível de suportar, até crianças de cinco ou seis anos laboravam jornadas de 12 horas ou mais, e não havia a quem recorrer, pois valia o que estava escrito e aceito, o contrato. Era o liberalismo em estado puro.
Esses pesadelos, hoje, foram contidos no mundo civilizado pela força dos institutos que surgiram justamente para combatê-los. Nasceram sob a urgência do terror e a partir do sacrifício pessoal de diversos mártires e resistentes. Graças a eles, a humanidade tornou-se mais humana. Um ser humano civilizado que mereça esse epíteto não mais pode comungar com tortura ou com o direito do Estado de matar quem considerar bandido.
O ser humano, porém, parece esquecer isso quando flerta com o autoritarismo. Em todas as épocas e em todos os locais nos quais floresceu, o autoritarismo levou o terror a todos, inclusive aos que apoiaram o seu nascimento.
Houve uma nação cujo povo, cansado do descaso de seus líderes, revoltou-se e os matou sem piedade. Uma nova liderança, advinda do povo e que em seu nome falava, os sucedeu. Logo surgiram, dentre os novos líderes, os que exigiam rigor extremo em relação aos vencidos. Era necessário, segundo eles, matar o velho para parir o novo. A matança começou. E não cessou até que, anos depois, um gigantesco percentual da população estivesse morta, inclusive os novos líderes. Após a terrível mortandade, tudo voltou a ser mais ou menos como era antes da revolução, o novo governo descuidando do povo em prol de outros interesses.
Qual o nome dessa nação? Fique à vontade para escolher. Pode ser França, pode ser Alemanha, pode ser Espanha, pode ser Rússia, pode ser China e muitos outros, a história é a mesma. A lição é idêntica em todos os casos: salvacionistas que prometem a redenção do povo através da violência em geral tornam-se abissalmente mais violentos do que o governo que almejaram extirpar, nada resolvem de fato, são engolidos pelo próprio movimento e ao sair em geral deixam as coisas piores do que estavam.
Claro que a Revolução Francesa possui importância histórica no nascimento de institutos que defendo veementemente, como os próprios direitos humanos. O que se pretende indagar aqui é a dimensão da violência que se pode admitir para derrotar o sistema. Chega, por exemplo, ao ponto de sonegar os direitos humanos ou o próprio sentido da democracia representativa?
Essa é a principal questão que, nesse momento, se coloca para os eleitores. Desejamos de fato compactuar com a redução de nossa própria condição humana em nome de um suposto combate à corrupção? A corrupção efetivamente é um tema de maior relevo do que a dignidade humana, cuja maior salvaguarda são os institutos colocados em dúvida nesse processo eleitoral? A violência urbana se resolve de fato com tortura, mais prisões e assassinato dos bandidos ou trata-se de questão mais profunda, vinculada à necessidade de produção de emprego e renda?
E mais: estamos dimensionando corretamente o perigo que se nos avizinha?
Quando a ditadura militar impôs o Ato Institucional nº 5, que endureceu o regime e praticamente institucionalizou a tortura no país, o vice-presidente da época, Pedro Aleixo, advertiu o presidente Costa e Silva: o problema mais grave não são os escalões superiores da hierarquia social, mas o guarda da esquina. Ele estava corretíssimo, como a história demonstrou. Os barnabés da administração pública civil e militar sentiram-se empoderados de tal forma que o povo passou duas décadas temendo desagradar, por qualquer motivo besta, um deles, mesmo uma simples diretora de colégio público. A retaliação burocrática poderia causar sérios reveses na vida das pessoas e podia mesmo ser fatal se o ofendido fosse um representante da (in)segurança pública, como policiais e militares de baixa patente.
O discurso legitimador da banalização do mal, agora, é o combate à corrupção.
Quando um líder aquiesce com a violência, seu discurso até pode ser meramente retórico ou eleitoreiro, mas a sua condescendência irresponsável dá início, ladeira administrativa abaixo, a um inexorável processo de condicionamento psíquico da burocracia que culmina com o fortalecimento do autoritarismo administrativo. Hanna Arendt lamentavelmente constatou, no julgamento do nazista Eichmann, que o mal banal faz residência no ser humano médio, que não hesita em cometer atrocidades em nome de institutos pueris como a obediência. A obediência é importante, mas não mais do que a ética e o respeito à vida e à dignidade do ser humano. Diante da ética, a obediência e mesmo a lei devem ceder espaço.
Estamos ainda no limiar desse processo de glamourização da violência e já são muitas as notícias de pessoas mortas ou violentadas por conta de sua opção política, de sua orientação sexual ou da região em que nasceram. Um candidato a governador, ex-juiz, ameaçou prender em flagrante o adversário em debate eleitoral que ainda farão, caso venha a entender como injúria a fala do oponente. Outro candidato a governador, de outro estado mas mesmo discurso, disse que, a partir de sua posse, a polícia passará a atirar em bandidos para matar.
Esses candidatos certamente desconhecem a história. Pessoas como eles, que estimulavam no povo a vontade do terror, foram vítimas do próprio remédio que receitavam. O advogado Robespierre, o político Danton e o jornalista Marat, que, durante a Revolução Francesa, advogavam o terror como meio de pacificação social, terminaram condenados à mesma pena que ditavam para os adversários políticos: a guilhotina. Dezenas de milhares de cidadãos franceses sucumbiram frente ao terror político que tanto invocaram e que achavam que seria redentor. Engano fatal.
O problema, repito, é o guarda da esquina; quando a euforia acabar e a rotina retornar, poderemos nos surpreender com a arrogância com que ele nos tratará. Um dia, um jovem filho de classe média, com a irresponsabilidade inerente à sua faixa etária, poderá embebedar-se e não ser, na visão da “autoridade”, cordial ou respeitoso o suficiente. Corre o risco de, na fala popular, “acabar na vala” com uma arma na mão e alguns papelotes no bolso. Saiu de casa como um promissor estudante e terminou na madrugada como mais um traficante morto pela valorosa polícia. E o povo, lendo as manchetes, ficará contente com a eficiência policial.
Estamos mesmo pedindo por isso? Por favor, digam que não. Digam que ainda somos humanos, pois, do contrário e em breve, pode ser que não mais mereçamos tal classificação.

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