terça-feira, 24 de agosto de 2021

A tentativa de retorno ao esgoto jornalístico*

A vitória eleitoral do PT, em 2002, deu início a um processo de deterioração do jornalismo, marcado pela escandalização de um lado só, contínuas distorções da realidade, com manipulação da verdade, construção de factoides e assassinato de reputações. Toda ação positiva do governo era ocultado, com progressiva disseminação da falsa ideia de que todos os problemas do Brasil possuíam um só nome (Lula) e uma só coloração (o vermelho do PT). Tal posicionamento, principalmente da imprensa majoritária, embora não propagandeado aos quatro ventos, tampouco era negado, tendo sido publicamente assumido em algumas oportunidades, como a contida na fala da então presidente da Associação Nacional de Jornais, Judite Brito, da Folha de São Paulo, que, em entrevista ao jornal O Globo, declarou que, ante a fragilização da oposição no Brasil, cabia aos meios de comunicação ocupar a posição oposicionista no país.

O jornalista Luis Nassif, em sua séria de reportagens “O caso de Veja”, analisou com profundidade esse fenômeno de anti-jornalismo, para tanto utilizando a revista Veja como exemplo, a mesma publicação que o saudoso Paulo Henrique Amorim apelidou, jocosamente, de “detrito sólido de maré baixa”. Claro que não foi somente essa revista que resolveu chafurdar nesse lodaçal, servindo somente de modelo, pois se tratava do maior semanário do país e possuía um passado com boa reputação. Disse Nassif2:

Gradativamente, o maior semanário brasileiro foi se transformando em um pasquim sem compromisso com o jornalismo, recorrendo a ataques desqualificadores contra quem atravessasse seu caminho, envolvendo-se em guerras comerciais e aceitando que suas páginas e sites abrigassem matérias e colunas do mais puro esgoto jornalístico.

No bojo da séria, cuja leitura se recomenda, Nassif aponta os vícios do antijornalismo, a motivação de seu surgimento e aponta caminhos a seguir.

A partir do golpe de 2016, e consequente assunção de Michel Temer à presidência, a imprensa iniciou um processo de relaxamento e purificação, com os jornalistas mais extremistas sendo dispensados e substituídos por vozes mais centradas. As críticas aos governos de Temer e de Bolsonaro, naturais ao serviço jornalístico e desejadas por seus leitores, eram poucas e serenas. O tom aumentou paulatinamente, à medida do aumento de frustração da imprensa golpista com seu candidato, Bolsonaro, porém, jamais extrapolando o limite da análise política, como deve ser. Nem Temer nem Bolsonaro jamais estiveram à mercê do mesmo estilo de esgoto jornalístico que se chocou violentamente contra os governos petistas.

A volta de Lula ao páreo eleitoral, todavia, assanhou os extremistas da imprensa do passado, com alguns tentando emplacar contra ele o tipo de manchete que se tornou comum naquele período de trevas e ausência de limites. Embora ainda tímido, está ocorrendo um ensaio de retorno ao esgoto jornalístico. Todavia, isso está sendo contido, ao menos por enquanto, por oportunismo. Os barões da mídia encontram-se sem opção: não desejam Lula, mas perceberam que Bolsonaro é um desastre para a economia real e para a imagem do país perante o mundo. Por conta disso, ainda há contenção civilizada na crítica a Lula.

Seria melhor, claro, que não ocorresse esse retorno do recalcado e que fosse mantida a crítica civilizada, analítica e objetiva que se deseja na imprensa. Todavia, no caso de viabilidade política de uma terceira via, como tanto desejam e estão perseguindo sofregamente, é plenamente possível que percam os escrúpulos e deem um restart no modelo abjeto anterior. A conferir.

Em paralelo, um aumento progressivo na agressividade crítica a Lula, inclusive por parte de atores políticos usual e ingenuamente classificados como de esquerda, é completamente natural. Adversários políticos sempre procuram pelo telhado de vidro uns dos outros. Faz parte do proselitismo político. Revela, claro, a preocupação com o tamanho eleitoral do adversário. Um candidato minoritário, fraco, não costuma ser atacado.

Quanto ao discurso especulativo sobre a idoneidade das urnas eletrônicas, trata-se, basicamente, de uma pauta exclusiva do bolsonarismo e não se inicia com a elegibilidade de Lula. Entretanto, a partir desse fato, viu-se uma espetacular multiplicação da tese de que as urnas são fraudáveis e que melhor seria o voto ser impresso e auditável. A vinculação é evidente. À medida da constatação do aumento do tamanho eleitoral de Lula, com crescimento correspondente da possibilidade de Bolsonaro não ser reeleito, o protofascismo brasileiro resolveu apostar na controvérsia, objetivando a criação de um ambiente propício para contestações, manifestações, embates físicos e, se vier é lucro, golpes em favor do atual presidente.

Pessoalmente, entendo que as urnas eletrônicas já são auditáveis. O caso, porém, não envolve apoio ou rejeição à proposta de voto impresso, mas da evidente fragilidade de um discurso promovido por um político eleito sequencialmente, há várias décadas, assim como seus filhos e amigos, pelo mesmo sistema de votação que falaciosamente tenta imputar de violável e não seguro.

Cabe às instituições, até aqui um tanto pusilânimes, impedir que discursos dessa espécie, com evidente propósito de provocar instabilidade política e social no país, sejam disseminados, inclusive, se necessário, com a condenação e impugnação da candidatura de Bolsonaro.

Evidentemente, o proselitismo político não para, é incansável. Com Lula livre, inocente e elegível, tornou-se indispensável, para seus detratores, a construção de novos discursos deslegitimadores da pessoa e da expressividade política do ex-presidente. Haveria de ser criada uma nova base de sustentação discursiva para a negativação de sua figura, de modo a manter acesa a chama da retórica política de seus detratores, como modo de estimular aliados e eleitores.

Isso porque, após a confirmação da inocência, o discurso de que “Lula está preso, babaca” definhou. O próprio envolvimento direto dele na corrupção é de custosa sustentação, fundado que foi em meras obras produzidas em dois imóveis: um triplex em relação ao qual tinha a opção legal de aquisição e da qual renunciou e um sítio de propriedade de um amigo. Juntando os valores dos dois supostos benefícios, mal alcança um quarto do preço de uma mansão subavaliada em seis milhões de reais em Brasília. Bastante complicado afirmar que o maior corrupto da história brasileira tenha se beneficiado com tão pouco. Para suprir a necessidade de preencher esse vácuo discursivo, cria-se a ideia de identidade autoritária entre Lula e Bolsonaro, com o engodo da falsa polarização entre dois extremos políticos, Lula representando a extrema-esquerda e Bolsonaro, a extrema-direita. Vende-se o argumento de que Lula e Bolsonaro atuam para evitar uma opção fora dessa polarização, impedindo o surgimento de uma terceira via. Por fim, inventa-se a falácia do Lula neoliberal, segundo a qual, ele é e sempre foi neoliberal. Esses discursos serão analisados em artigos a serem publicados aqui no blog. Acompanhem.

Nota:

1 – Este artigo, assim como o anterior e os próximos dois que serão publicados no blog, constitui mera divisão do longo texto publicado no dia 10 de agosto de 2021, intitulado “Lula: efeitos políticos da inocência”. Todas as referências e notas explicativas podem ser obtidas no texto completo, aqui: http://marciovalley.blogspot.com/2021/08/lula-efeitos-politicos-da-inocencia_11.html

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