domingo, 22 de agosto de 2021

O aumento na inquietação de militares*

 

Este artigo, e os próximos três que serão publicados no blog, constituem mera divisão por tópicos do longo texto publicado no dia 10 de agosto de 2021, intitulado “Lula: efeitos políticos da inocência”, cujo link é fornecido no final.

A liberdade e posterior inocência judicial de Lula, com consequente possibilidade de sua candidatura em 2022, produziu um visível e injustificável aumento de inquietação nas forças armadas. A insatisfação dos militares com uma possível vitória de Lula é injustificável porque o petista foi, na história recente, o presidente que mais se empenhou pela valorização das forças armadas. A jornalista Eliane Cantanhêde, do jornal Estado de São Paulo, da qual se pode dizer tudo, menos que seja esquerdista ou simpatizante de Lula, assim se manifestou recentemente sobre o assunto1:

Uma das dúvidas que mais incomodam o ex-presidente e pré-candidato de 2022 Luiz Inácio Lula da Silva é por que, afinal, os militares têm tanto ódio dele e do PT. Uma dúvida justa, justíssima, porque os dois mandatos de Lula foram de paz na área militar, com o Ministério da Defesa forte, boas relações entre presidente e comandantes militares e capacitação e reaparelhamento das Forças Armadas. É inegável, é fato.

Além de injustificáveis, tais manifestações possuem, via de regra, um elevado teor antidemocrático, sendo oriundos principalmente de militares reformados. Embora analistas percebam um quadro de maior tranquilidade dentre os militares ativos, essa percepção é bastante insegura, dado que o regramento militar os impede peremptoriamente de publicar manifestação sobre assuntos de natureza político-partidária. Desse modo, o grau de tranquilidade ou intranquilidade dentre os ativos é um elemento incerto, pois suas manifestações não se tornam públicas. É claro que declarações públicas de alguns ex-militares nos transmitem uma certa tranquilidade quanto ao clima entre os militares ativos. É o caso do general Santos Cruz, que integrou o governo no início, mas após deixá-lo tornou-se um crítico contumaz do ex-chefe.

Todavia, independentemente do posicionamento de alguns militares, os cidadãos não podem e não devem deixar-se conduzir politicamente a partir dos humores dos comandantes das forças armadas, num país que, constitucionalmente, está submetido ao regime democrático civil de um Estado de Direito. Por imposição constitucional, o estado de ânimo dos integrantes das forças armadas deve ser, sempre e perenemente, o de submissão disciplinada aos poderes civis e democráticos. Não cabe um general de pijama gritar e a sociedade recuar de suas pretensões. Entendimento contrário implica o cidadão já experimentar uma ditadura militar, justamente o que busca evitar os que perseguem uma suposta “moderação política” invocada para acalmar os quartéis ou os clubes de militares aposentados. Nesse caso, a expressão “moderação política” representa mero eufemismo para descrever um ambiente político de medo e covardia, no qual é imposto o silêncio sobre comportamentos antidemocráticos praticados precisamente pelos servidores públicos designados legalmente como os guardiões da democracia. Medo disseminado de ser vítima do poder estabelecido é uma característica marcante de todo totalitarismo.

Pessoalmente, não creio que os militares, como instituição, estejam fechados com um político grosseirão como Bolsonaro. São conservadores e submetidos aos interesses da potência hegemônica, não há dúvida alguma. Porém, historicamente estiveram aliados à elite educada, culta e “limpinha” (significando uma aura, real ou não, de dignidade, moralidade e honestidade). Bolsonaro é deselegante, não possui comedimento, nem filtros e tampouco vergonha alguma de demonstrar quem realmente é; goza na demonstração de ser politicamente incorreto, com desprezo por valores civilizatórios. Diverge frontalmente do figurino adotado por aliados históricos dos militares, que já tiveram o relevo de Delfim Netto, Roberto Campos ou Magalhães Pinto. O atual presidente foi uma opção casuística da caserna, num momento em que não havia alternativa ao candidato da esquerda e quando ainda existia quem pensasse que ele seria contido pelo rigor da liturgia do cargo e pelas instituições. Enganaram-se, claro. E foram ingênuos demais.

Creio já ter deixado claro, em textos anteriores, o meu entendimento de que os seres humanos ainda se encontram num estágio de desenvolvimento muito mais próximos ao da ancestralidade animal (carga instintual) do que da recente espiritualidade (inteligência racional e lógica). Os que desejam possuir um animal selvagem perigoso em casa sabem que bestas devem preferencialmente receber domesticação desde o nascimento; ainda assim, é preciso torcer para que a sua natureza consiga ser moldada pelo adestramento. Em relação às que crescem nas matas até uma idade avançada, com livre submissão aos instintos, embora em tese ainda seja possível acalmar-lhes o furor selvagem e agressivo, o adestramento se torna bem mais complicado, difícil e demorado; por vezes, impossível. Via de regra, quando capturadas, acabam sendo devolvidas ao ambiente original ou, infelizmente, aprisionadas. Seres humanos não diferem muito disso. Bolsonaro, com quase 70 anos, não é mais capaz de incorporar ensinamentos civilizatórios e humanísticos. Ele é como se apresenta e será sempre assim, quem quiser que o adote e corra o risco. O problema é que, tratando-se de uma figura política, os que o adotaram em 2018 nos obrigaram a correr o mesmo perigo. Até esse momento, 550 mil vidas são testemunhas disso; quantas mais serão?

Acredito firmemente que os militares não interferirão no resultado das eleições. Pode ser que, como no passado, surja um bilhetinho ou outro para o STF ou outra instituição civil, mas não passará de atos simbólicos voltados para a satisfação subjetiva dos próprios emissores, uma espécie de tentativa de resgate, de dentro de si e para dentro de si, de um poder hierárquico que já não possuem. Basta ignorá-los e não acreditar que seja “verdade esse bilete”.

Como sabem os psicólogos infantis, a pirraça é uma demonstração de inconformismo com a percepção de ausência de poder próprio; se a criança não consegue o que quer, ela bate os pezinhos durante um tempo, mas depois se aquieta. Os pais que se entregam às pirraças nunca mais, ou dificilmente, recuperarão a disciplina perdida.

As instituições de Estado, principalmente o STF, devem manter a pressão sobre a disciplina e a hierarquia dos militares, como vêm fazendo.

*Nota: Este artigo, e os próximos três que serão publicados no blog, constituem mera divisão do longo texto publicado no dia 10 de agosto de 2021, intitulado “Lula: efeitos políticos da inocência”. Todas as referências e notas explicativas podem ser obtidas no texto completo, aqui: http://marciovalley.blogspot.com/2021/08/lula-efeitos-politicos-da-inocencia_11.html

Nenhum comentário :

Postar um comentário