sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Lula e sua jornada: prisão, liberdade e inocência

Num cenário político que se move acelerada e freneticamente, a partir de comoções diárias, costumeiramente negativas, as situações que abordarei serão consideradas por alguns como pertencentes a um passado remoto. Contudo, entendo não ser possível a um contador de histórias que inicie sua narrativa pelo meio ou pelo final da tragédia sem prejuízo da perfeita compreensão da aventura ou desventura que deseja passar adiante. Por isso, mesmo correndo o risco de ser cansativo, começarei pelo começo.

Essa história é sobre Lula e sua jornada: prisão, liberdade e inocência. Aqui, abordarei os fatos em si da prisão, liberdade e posterior retorno à condição de inocência. Em outro a ser publicado, já em construção, pretendo comentar os efeitos políticos dessa nova condição de inocência. A divisão se justifica, em grande medida, por minha assumida prolixidade, que disfarço sob o nome de incapacidade para escrever textos curtos sobre assuntos complexos, mas também pela extensão do assunto. Há muito a ser dito.

O pano de fundo dessa história é um cenário político no qual os atores com os papéis mais relevantes e essenciais no drama possuem plena ciência da extensão de seus poderes e deveres, de modo que bem sabem que poderiam livrar o país da tragédia ainda em andamento, mas, ou não se importam ou se omitem por covardia ou ambição. Vamos a ela, a história, ponto a ponto.

A corrupção – A corrupção institucional brasileira possui natureza estrutural e, por isso mesmo, independe do caráter do governante que esteja no poder. Trata-se de uma corrupção histórica, ancestral, que não surge com o governo do PT e tampouco foi extinta após ele. O fato é que não há administração pública, nacional ou estrangeira, totalmente imune à prática de ilícitos. Pode-se afirmar, tranquilamente, a existência de corrupção, em maior ou menor grau, em todos os governos do mundo, principalmente nos maiores países, pois grandes orçamentos atraem grandes rapinas. No que concerne a esse aspecto, o ponto distintivo entre uma administração boa e outra ruim é o modo de lidar com os infratores. Uma boa administração envidará esforços para melhorar os mecanismos de fiscalização e não interferirá na liberdade de funcionamento das instituições responsáveis pela investigação e eventual punição dos corruptos. A má administração trabalhará para que tudo seja conduzido para debaixo do tapete.

Um efeito paradoxal disso é que a boa administração, ao não interferir no trabalho institucional de combate aos malfeitos, acaba por expô-los, amplificando o conhecimento popular sobre os casos de corrupção. Denomino isso de “efeito percepção” ou “efeito formigueiro”, pois se trata de algo similar ao que ocorre num formigueiro: poucas formigas são vistas ao seu redor, mas basta pisá-lo para que milhares delas apareçam. Elas sempre estiveram lá, só não eram vistas. O “efeito formigueiro” produz na coletividade a falsa sensação de aumento dos casos. Se não compreendido o fenômeno, um bom governo pode ser mal interpretado pela população, tornando-se vítima do próprio republicanismo.

Os governos petistas jamais deveriam ter sido marcados pela mancha da corrupção, mas, antes, pela construção, ou ao menos tentativa de construção, de uma forte estrutura de combate a esse mal, iniciada imediatamente com a posse de Lula. De fato, logo no primeiro dia de seu primeiro mandato, em 1º de janeiro de 2003, ele assinou a MP n° 103/2003 (depois Lei n° 10.683/2003), criando a Controladoria-Geral da União e atribuindo ao seu titular a denominação de Ministro de Estado do Controle e da Transparência. Tal movimento implicou elevação do status administrativo da pasta, sinalizando o norte a ser observado dali em diante.

Não se tratou de fanfarronice ou inauguração de obra inacabada, para inglês ver. O combate à corrupção foi realizado materialmente. Considerados os primeiros doze anos de governo petista, incluído o primeiro de Dilma Roussef, o número de varas federais foi ampliado de cerca de cem para mais de quinhentas. Como é intuitivo, a eficiência de um verdadeiro combate à corrupção de âmbito federal exige maior estrutura da Justiça Federal, que é o ramo do judiciário com competência penal para tal. Aliado a isso, ninguém pode acusar o PT de ter conduzido para a chefia da Procuradoria-Geral da República um “engavetador geral da república” comprometido com o encobertamento de desvios. Pelo contrário, houve respeito absoluto à democracia interna da instituição, invariavelmente sendo conduzidos os mais votados pelos procuradores. Nenhum deles deu descanso aos governos petistas; ainda assim, jamais houve interferência do executivo federal na instituição. Disso resultou que as operações da Polícia Federal, que somavam apenas 48 nos oito anos do governo anterior (média de seis por ano), saltaram para cerca de 2.300 nesses doze anos de governo do PT, com a média sendo catapultada para mais de 190 por ano. Membros poderosos do governo do PT foram investigados e denunciados pela PGR, sem que haja notícia de tentativas de acobertamento, inclusive quando era evidente a injustiça cometida, como no caso de José Genoíno.

Acertou em cheio o filósofo e professor universitário Mário Sérgio Cortella, quando disse, à época, que “não podemos perder o foco do que vivemos hoje no Brasil, que não é o auge da sujeira, mas o começo da limpeza”. Nesse ponto, pode-se afirmar que a comunicação institucional do governo Lula falhou ao não demonstrar para o povo que o aumento das notícias de corrupção não decorria de aumento equivalente no número de casos, mas sim da liberdade de atuação institucional e da transparência republicana.

Estou afirmando que os casos de corrupção noticiados não existiram? Nem de longe. Entendo apenas que houve uma inadequada vinculação do centro do governo Lula a uma corrupção nitidamente estrutural. Vinculação baseada no simples fato de que era o governo que fazia a nomeação – dentre os indicados pelos diversos partidos da base de sustentação – dos ocupantes dos diversos cargos da administração direta e indireta. O alicerce dessa vinculação indevida foi a popularização de uma visão distorcida, à moda brasileira, da teoria do domínio do fato, a saber, o chefe do corrupto é igualmente culpado, independentemente de prova, pois presume-se saber do ilícito, de modo que é mandante ou ao menos cúmplice; uma barbaridade.

Sem me alongar sobre os assuntos mensalão e Lava Jato, destaco existir um sem-número de artigos e livros escritos por juristas de renome, cientistas sociais e jornalistas, que colocam o julgamento do mensalão e dos processos da Lava Jato sob suspeita, no campo do puro e simples macartismo, com fabricação de provas, evidências paridas a fórceps e utilização de interpretações e teorias jurídicas de forma inédita e exclusivas, com vistas a produzir as condenações desejadas pelo sistema.

Especificamente quanto ao mensalão, poucos sabem que uma perícia judicial, produzida nos autos da ação penal 470 do STF (mensalão), pedida por Henrique Pizzolato, ex-diretor do Banco do Brasil condenado naquela ação por peculato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro, comprovou (a) que o dinheiro não era do Banco do Brasil, mas do Fundo Visanet, instituição privada bilionária, de modo que não houve desvio de bem público e não podia ter ocorrido peculato; (b) que Pizzolato não era o responsável pelos repasses; e, principalmente, (c) que os contratos de publicidade foram cumpridos e os valores foram efetivamente repassados a empresas de mídia como a Rede Globo. O perito encontrou todas as notas fiscais e os registros contábeis de recebimento pelas empresas contratadas. Essa perícia foi solenemente ignorada pelo ex-ministro Joaquim Barbosa, que, contra essa prova, declarou que o dinheiro do Banco do Brasil havia sido desviado e condenou Pizzolato. Contudo, mais recentemente, outra perícia judicial foi realizada, em ação na qual o Banco do Brasil pretendia a devolução do suposto dinheiro desviado, conforme afirmado na sentença do STF. Essa nova perícia chegou à mesma conclusão da anterior: o dinheiro não era do Banco do Brasil; não houve desvio e há prova de pagamento das publicidades. Contudo, ainda não houve absolvição de Pizzolato.

Os casos, em si, não constituem o ponto que almejo, que é o desmonte do discurso fraudulento que tenta passar a ideia de que a corrupção era algo exclusivo do governo do PT, ou que teve uma dimensão jamais vista, ou que toda e qualquer corrupção, mesmo numa estatal menor, estaria vinculada a um esquema montado pelo centro do governo petista. Segundo esses detratores, bastaria tirar o PT do poder para que a corrupção fosse extinta. Se isso fosse verdade e não mera retórica palanqueira de araque, estaríamos livres da corrupção desde 13 de maio de 2016, quando Dilma foi deposta por um golpe. Como a história demonstrou, não foi o que ocorreu. Após Dilma, tivemos Michel Temer na presidência, que permaneceu no exercício do cargo embora com direitos políticos cassados em decisão transitada em julgado, acusado de integrar o que é considerado um dos maiores esquemas de corrupção da história, além de escolher um ministério composto por várias pessoas acusadas de improbidades e desvios de dinheiro público. Quanto à presidência atual, existem investigações em andamento sobre casos escabrosos que envolvem diretamente a própria família presidencial e também auxiliares de peso, do centro do poder. A CPI da covid está em andamento, aguardemos seu desenlace. Que a corrupção não é exclusividade do PT é fato reconhecido, há pouco tempo, pelo próprio Bolsonaro, ao declarar a impossibilidade de evitar a corrupção e que ela certamente ocorreria com alguma das incontáveis pessoas por ele nomeadas. Ao menos quanto a isso, ele está correto. Se não há nada contra o nomeado até a data de sua nomeação, só resta ao governante punir ou deixar punir caso venha a praticar um ilícito.

Para finalizar, embora haja muito estrépito e muita gente que “acha” que os governos petistas envolveram maior corrupção do que qualquer outro, isso jamais foi demonstrado cabalmente, para além de qualquer dúvida. Pelo contrário, o que se assiste, já há algum tempo, é um desmanche assombroso de diversas condenações que envolveram diretamente representantes do PT em casos de corrupção. Foi assim com Lula, mas também com José Dirceu, José Genoíno, Delúbio Soares, João Vaccari Netto e outros. Embora contra alguns desses ainda pendam condenações por outras motivações, os recursos não se esgotaram. A sinalização, porém, é sombria para a Lava Jato.

A prisão – O início dos processos criminais que envolveram o ex-presidente Lula provocou enorme comoção em alguns meios, principalmente nas grandes empresas de informação e dentre jornalistas notoriamente antipetistas e antilulistas. Afinal, se tratava do clímax de um linchamento midiático agressivo que durou ao menos uma década, com manchetes diárias escandalizando o banal, produzindo ilações e vinculações impertinentes. Tudo com o propósito de extirpar o petismo, não somente do governo federal, mas da política, se possível. Esse frisson, contudo, chegou onde não deveria jamais ter chegado: no sistema de justiça. Parcela importante de membros da Polícia Federal, do Ministério Público e do Poder Judiciário (a partir de agora, todos serão denominados de “magistrados”) resolveu chafurdar nesse pântano de linchamento e destruição de reputações. Mergulharam de cabeça, praticamente um salto de fé, no que pode ser classificado como uma espécie de lama hermenêutica na qual nenhum escrúpulo deveria ser levado em conta na missão de destruir o inimigo. Isso ficou evidente a partir do momento em que o ex-presidente foi denunciado.

Na verdade, o problema com os magistrados se inicia em momento anterior ao dos processos de Lula. Começa com alguns magistrados que, de um tempo para cá, tentam se transformar em influenciadores digitais através das redes sociais. A exposição, por vezes, chega a ser constrangedora, com publicação de fotografias nas quais, em trajes sumários, exibem músculos fitness, armas em punho ou ambos. Pior: na condição de digital influencers, passaram a jorrar opiniões sobre tudo e qualquer coisa, desde receitas culinárias a opiniões políticas. No que toca às opiniões políticas, há quem revele pensamentos com traços fascistas ou minimamente antissociais e antidemocráticos; quem publique opiniões com desvalor a pessoas desfavorecidas; e até quem busque justificar assassinato de vereadora progressista. Não se dão conta ou pouco se importam, primeiro, com a carga simbólica e a liturgia que acompanham o cargo que ocupam, e, segundo, com a circunstância de que, dada a condição de magistrados, essa ferocidade verborrágica pode, em muitos temas, resultar em confronto com a isenção e imparcialidade que deles se espera.

De que forma um magistrado publicamente adepto do “Fora Bolsonaro” ou que compartilhe um post com a expressão “Bozo Corrupto” poderia se dizer isento ou imparcial para conhecer de causas envolvendo o presidente? É, sim, uma questão de livre manifestação de pensamento, mas que reflete ou pode refletir na atuação profissional, de modo que há de ser encarada a necessidade de limitação desse tipo de exposição, como ocorre com os militares, por exemplo. Ora, desde que manifestada publicamente a opinião, a falta de isenção em relação ao tema fica exposta. A prudência e o comedimento recomendam que magistrados não se manifestem publicamente sobre temas sensíveis, pois não se pode prever as questões que enfrentarão no futuro. Seja qual for a opinião publicada, contra ou a favor, dela pode decorrer uma necessária declaração de suspeição. Na verdade, melhor seria que sequer integrassem redes sociais. Caso integrem, que fiquem restritos a amigos próximos e parentes e a postagem de assuntos meramente pessoais. Como diz o ditado, “à mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta”.

A vinculação e parceria entre os barões da mídia e a operação Lava Jato, juiz Moro inclusive, era gritante. Nenhuma acusação era refutada pela crítica jornalista, que na verdade inexistia, tratando-se de puro adesismo conveniente, pois, no fundo, era o que desejavam dos operadores. O que a Lava Jato dizia era aceito e escandalizado em manchetes, sem contraponto de igual nível. Para quem queria enxergar, restou claro que Lula seria condenado independentemente da verdade, do que ocorresse no processo ou do que quer que as provas dissessem. Nas corretas palavras do próprio ex-presidente, Moro estava condenado a condená-lo.

A partir da certeza de Lula condenado antes mesmo da sentença, magistrados que se afirmavam e eram tidos como garantistas ferrenhos, atentos aos direitos materiais e processuais dos acusados, passaram à ardorosa defesa da tese de prisão após a segunda instância, vale dizer, antes do trânsito em julgado. O problema é que esses magistrados, alguns considerados “garantistas,” “iluministas” e “humanistas”, até esse momento juravam de pés juntos, em suas sentenças e livros, que o trânsito em julgado somente ocorria após cessarem todos os recursos disponibilizados pelo ordenamento jurídico aos condenados em geral.

Nem poderia ser diferente. A lição de que o trânsito em julgado somente ocorre quando a sentença se torna irrecorrível é ensinada aos estudantes pelas faculdades de Direito desde o primeiro semestre e é a mesma até hoje. Como poderia ser de outra forma? O ensinamento advém diretamente da literalidade do inciso LVII do artigo 5º de nossa Constituição e do artigo 283 do Código de Processo Penal. Diz o primeiro, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, o que significa que a pessoa é considerada inocente até esse momento crucial. Já o segundo dispõe que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Nesse caso, a coisa é absurdamente literal e clara, basta ler o que está escrito: ninguém poderá ser preso senão em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado.

A interpretação dos dois dispositivos não gera dificuldade alguma, sendo fácil, direta e literal. Ninguém precisa ser formado em Direito para entendê-los. Sem intenção alguma de demérito na afirmação, a pessoa que varre o gabinete do magistrado, na hipótese de possuir apenas a formação básica, se for apenas alfabetizada, lerá os dispositivos acima e produzirá, rapidamente e sem titubeios, a correta interpretação da intenção do legislador. Em resumo, não há necessidade alguma de ser um ás da hermenêutica jurídica para entender o que diz a lei nesse aspecto. Aliás, não há necessidade sequer da própria hermenêutica jurídica. Uma interpretação de texto simples, primária, é o que basta. Não raras vezes, a construção de complexidades sobre coisas simples busca apenas impedir que o que é devido seja entregue.

Justamente pela extrema simplicidade da redação da lei, nunca houve dúvida alguma, no mundo jurídico, quanto a esse ponto: prisão, só após o trânsito em julgado, salvo se houver fundado motivo para as exceções que a própria lei descreve, ou seja, prisão em flagrante, temporária ou preventiva. E foi assim até o momento em que a capa do processo penal ostentou o nome de Luís Inácio Lula da Silva e quando pairava no ar a inevitabilidade da condenação. Para quem acompanhou o drama de perto, e percebeu as nuances subjacentes a cada ato processual, era razoável supor que, ao ser assinado o despacho de “cite-se”, a base estrutural da sentença condenatória já estava pronta, faltando apenas preencher lacunas que dependiam do andamento processual. E foi justamente isso, a imensa probabilidade de condenação, que animou certos “juristas” a alterar repentinamente um entendimento jurisprudencial pacificado há décadas. Sem pudor algum em relação à demonstração de incoerência com o que publicaram anteriormente, numa espécie de tergiversação intelectual, e sequer com a própria biografia, esses “iluministas sem espírito” mudaram o próprio entendimento: não havia mais necessidade de trânsito em julgado, bastava um único recurso para o 2º grau de jurisdição para que, mantida a sentença, o réu fosse preso. Essa é a razão para Lula ter permanecido preso por 580 dias sem condenação transitada em julgado, ou seja, quando ainda era possível sua absolvição pelas cortes superiores.

Não contavam, é de se presumir, com a possibilidade, que veio efetivamente a ocorrer, de que a prisão de Lula resultaria, não na humilhação pública dele, mas na do Poder Judiciário brasileiro como instituição. Pelo mundo afora, levantou-se a bandeira de “Lula Livre”, algo poucas vezes vista na história em relação a qualquer pessoa, em geral dedicado somente a pessoas da estatura histórica de um Mandela; especificamente no que toca a um brasileiro, certamente inédito; antes de Lula, ninguém; após ele, somente uma pessoa, mas pela motivação inversa: o “Fora Bolsonaro” também ganhou o mundo. O tiro definitivamente saiu pela culatra. Não foi, como desejavam, a derrota, mas a consagração mundial do estadista Lula. Possivelmente, é dessa inaudita vergonha institucional que nasce o desejo de reparar o erro e reduzir o estrago em reputações. Afinal, juristas brasileiros viajam para o exterior, ouvem críticas, sentem na pele a dor de serem excluídos por personalidades comprometidas com a dignidade. As portas para convenções internacionais praticamente se fecharam para esses “iluministas sem espírito” reconhecidamente vinculados à operação que o mundo considerou injusta, indigna e mesmo perniciosa para a civilização.

Os perigos da interpretação da lei que busca negá-la – A interpretação da lei, produzida pelo magistrado, não pode ser de tal modo subjetiva e elastecida que chegue ao ponto de conduzir à negativa do direito por ela literalmente disponibilizado ao cidadão. A esse axioma se agrega outra regra de ouro da hermenêutica jurídica: a interpretação da norma punitiva há sempre de ser restritiva, não pode ser extensiva; em outras palavras, a sanção aplicada jamais pode ir além do que a regra literalmente estipula. Se tais princípios são violados, há uma forte presunção de que o magistrado, por algum motivo, não foi isento ao julgar.

A negativa de um direito literalmente concedido pela lei somente pode ocorrer à vista de expressa exceção existente nela própria e desde que exaustivamente fundamentada. Repito: exaustivamente fundamentada. Não se pode negar um direito com um simples “indefiro” ou de forma monossilábica, sem suficiente exposição de motivo para a negativa. Resumindo: a interpretação prejudicial ao direito da parte, contra a literalidade da lei, não pode sair somente da cabeça do magistrado, sem amparo em texto legal expresso ou jurisprudência consolidada especificamente para o caso concreto examinado. Permitir tal tipo de interpretação resulta em monumental insegurança jurídica.

É exatamente através da utilização desse tipo de interpretação enviesada – que examina um objeto apenas para concluir que ele não existe –, que um segmento antidemocrático da população, felizmente minoritário, tenta manipular a democracia para produzir uma ditadura. Para tanto, produzem uma hermenêutica absurdamente chinfrim do artigo 142 da Constituição, que trata dos militares e seu dever de garantir os poderes constitucionais. Em primeiro lugar, o dispositivo constitucional em questão é menor, secundário, não perene. Não poderia, jamais, entrar em confronto com cláusulas magnas principais, estruturais, por isso mesmo pétreas, ou seja, imodificáveis. O próprio preâmbulo da Constituição afirma que o propósito da Assembleia Nacional Constituinte é a instituição de um Estado Democrático. Um regime militar ditatorial pode ser classificado de diversos modos distintos, nenhum deles como sendo um “estado democrático”, mesmo se considerado um hipotético, duvidoso e até mesmo risível propósito benéfico que se possa tentar atribuir aos “bondosos” e “honestos” militares. Vale lembrar que alguns militares, inclusive de alta patente, integrantes do atual governo, em cargos relevantes, estão mergulhados nas falcatruas ocorridas nas negociações para a compra de vacinas, segundo apurado pela CPI da covid. É preciso entender que militares, assim como qualquer outra classe profissional, como sacerdotes, políticos e magistrados, não constituem uma classe especial de seres humanos, moral e eticamente superiores. São pessoas comuns, como todos nós, com todas as virtudes, vícios e fragilidades inerentes aos humanos. A maioria certamente é impoluta, eficiente e séria, mas alguns, sem dúvida, são corruptos, inaptos e canalhas.

Em paralelo, há o parágrafo único do artigo 1º, segundo o qual “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, ratificando a instituição da democracia. Além disso, o inciso XLIV do artigo 5º da Constituição, que também é uma cláusula pétrea, diz expressamente constituir crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Ou seja, não há hipótese de leitura ou interpretação da constituição que autorize a invasão do espaço democrático por golpes, militares ou civis, escancarados ou velados, pois todo e qualquer golpe, sem exceção, sempre terá como objetivo anular a opção democrática do cidadão, dele retirando o direito de exercer o poder, seja pessoalmente (iniciativa direta, plebiscitos e referendos) ou através do representante no qual votou (parlamentares e chefes do executivo).

Se é assim, como interpretar o disposto no artigo 142 da Constituição, já que os militares devem garantir os poderes constitucionais? Simples: devem utilizar a força necessária para garantir os poderes do Estado quando estes poderes estiverem sob ameaça real, interna ou externa, todavia, sob pedido expresso e comando dos próprios poderes civis ameaçados e sem que a força utilizada promova a preponderância de um poder sobre os demais. Essas são as balizas democráticas insuperáveis de uma intervenção militar no poder civil. A assunção do poder pelos militares, sem o incondicional voto dos eleitores, é golpe e não é apoiado pelo texto constitucional. Quem não enxerga isso, é golpista, logo, por definição, posiciona-se contra a democracia que a Constituição exige e impõe.

Além da negativa do direito alheio por considerações subjetivas do magistrado, sem necessária vinculação com a lei, há um outro grande perigo na condescendência corporativista com magistrados que fazem pouco-caso, atuando com desleixo ou má-fé, na interpretação da lei. Talvez seja, de fato, o maior perigo. Essa pusilanimidade corporativa possui potencial para empurrar parte significativa do judiciário para o balcão de negócios. Nessa hipótese, o que preponderaria não seria, como deve ser, a aplicação da lei orientada pelo senso de justiça, mas o interesse financeiro. Alguns poderiam dizer que isso já ocorre, mas não é verdade. Os vários justos não merecem pagar pelos poucos pecadores. A parte imensamente majoritária do sistema de justiça é séria, atuando com profissionalismo, dedicação e honestidade. Equívocos de julgamento ocorrem, como sói acontecer em qualquer setor, mas decorrem de convicção, errada que seja, mas não de má-fé ou desvio de conduta. Falo com conhecimento de causa, como alguém que atua no sistema há décadas e, por isso, é testemunha do comportamento inatacável da maioria dos advogados, membros do Ministério Público, magistrado e serventuários.

Entretanto, a permissividade com a evidente má-fé é capaz de degenerar o sistema com gravidade ao incentivar o agente político (procurador ou magistrado) a invocar a escusa do próprio entendimento, seja qual for, como justificativa para interpretações da lei nitidamente injustas, contrárias à lei e ao que consta dos autos. A escusa do entendimento é uma fragilidade estrutural com imenso potencial para a manipulação do sistema de justiça por agentes de má índole e mal-intencionados. Como se sabe, a sensação de impunidade estimula o crime. Há que se estabelecer um limite razoável para a interpretação subjetiva, com punição se evidenciado ter sido produzida com descolamento da realidade jurídica, legal e jurisprudencial, e ainda que nenhum ganho pessoal tenha sido demonstrado. O caso é similar ao de um engenheiro que cometa um erro inadmissível no cálculo estrutural de um prédio de vários andares. Se o desastre ocorrer, pouco importa se houve desonestidade ou se foi um único episódio; basta o dano coletivo, de natureza irreparável, para que sua licença seja cassada. Juízes e procuradores são peças políticas importantes demais para o interesse da sociedade; não podem simplesmente ser considerados irresponsáveis por erros primários cometidos nos autos à guisa de “entendimento pessoal”. A alternativa é a multiplicação do que se viu na Lava Jato, uma operação que violou uma imensa gama de direitos e garantias individuais sob a desculpa de combater a corrupção, ou seja, a violação da lei para combater a violação da lei. Isso sem contar a possibilidade, sempre presente, da existência de interesses financeiros ocultos.

Os governos que se sucederam demonstraram cabalmente que a corrupção não somente não acabou, como, ao que parece, contaminou instituições até então consideradas sérias por parte dos brasileiros, como a militar. O que de fato a Lava Jato conseguiu com a perseguição a Lula e consequente destruição da representatividade dos eleitores foi o agravamento de uma divisão social que já vinha sendo delineada, mas alcançou um ponto impensável até então, com amigos e familiares se separando e passando a se odiar mutuamente em função da propaganda política provocada por processos fraudulentos. Fora isso, como herança da Lava Jato, o Estado foi tomado por pessoas de índole duvidosa nos parlamentos e nos executivos, muitos sabidamente envolvidos em crimes.

A nau da corrupção persiste navegando, veloz e impune, com agentes políticos famosos perdendo a vergonha de comprar imóveis à vista de todos, inclusive mansões de milhões de reais, sem correspondência com seus ganhos e sem justificativa alguma para origem dos recursos. Ao que parece, pensam que não devem satisfação ao povinho. Esse é o resultado de um sistema de justiça permissivo à perseguição de fantasmas por mera política, enquanto se faz leniente com os verdadeiros criminosos.

A libertação e a inocência – Em 8 de novembro de 2019, após uma prisão política que perdurou pelo interminável tempo de um ano, sete meses e 5 dias (580 dias) Lula foi libertado. É perfeitamente adequado o uso da palavra interminável. Toda prisão injusta é assim. Imagine-se, a si mesmo, preso por apenas uma semana, sabendo-se inocente da acusação. A condição de injusta, por outro lado, foi enxergada pelo mundo inteiro, à exceção unicamente do bizarro universo paralelo no qual vivem os antiesquerdistas. A liberdade não decorreu de reforma da sentença condenatória, mas de reconhecimento tardio, pelo STF, de que a execução de pena somente se inicia após o trânsito em julgado da condenação e não meramente após a manutenção da condenação pela segunda instância.

Com uma inaceitável demora (dada a dimensão política do evento), o mais alto grau do Poder Judiciário brasileiro finalmente reconheceu o óbvio ululante para qualquer pessoa alfabetizada que leia a Constituição: a condição de inocente da pessoa até que uma sentença penal transitada em julgado diga o contrário. E um inocente não pode ser preso, salvo, como dito, se configuradas as condições especiais determinadas na lei, seja por prisão em flagrante, seja porque preenchidos os requisitos para a prisão temporária ou preventiva. Afora isso, o acusado responde em liberdade até o trânsito em julgado. Lula não foi preso em flagrante e não havia motivação para prisão temporária ou preventiva, que sequer constam da decisão condenatória. Portanto, a prisão foi injusta.

Após a libertação de Lula, passaram-se mais 486 dias (um ano e quatro meses) até o retorno pleno à condição de inocente. Em 8 de março de 2021, o ministro Fachin, do STF, declarou monocraticamente (ou seja, sozinho, sem participação da Turma), na condição de relator, a nulidade dos processos penais que tramitavam perante a vara federal de Curitiba em face do ex-presidente, inclusive os dois com sentenças prolatadas e razão de ser da prisão açodada. O fundamento foi a incompetência territorial da vara de Curitiba. Fachin entendeu que os processos seriam da competência das varas federais do Distrito Federal. Vinda de quem veio, a decisão foi extremamente significativa, pois o ministro é considerado, ainda hoje, um ardoroso defensor das ações da Lava Jato, inclusive aquelas vistas com desconfiança pelo mundo jurídico por considerá-las ilegais. A própria decisão que beneficiou Lula é compreendida por analistas, não como o inevitável reconhecimento do direito do ex-presidente, mas como manobra para salvar parte da Lava Jato.

A pá de cal veio quinze dias após a declaração de nulidade dos processos. Em 23 de março, a segunda turma do STF, tendo Gilmar Mendes como relator, declarou a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para atuar e julgar esses mesmos processos. Suspeição é o termo jurídico aplicado quando se entende que o juiz não possui imparcialidade para julgar, pois apresenta interesse pessoal na causa, aparente ou real. O público já havia tomado conhecimento desse interesse pessoal através das mensagens gravadas no aplicativo de mensagens utilizado pela Lava Jato, que se tornaram públicas e deixavam clara a opinião absurdamente antipetista e antilulista das autoridades envolvidas no processo – delegados, procuradores e juiz –, evidenciando a total ausência de isenção para investigar, acusar e julgar. Embora essas mensagens não tenham sido indicadas pelo STF como motivo da suspeição, não há dúvida de que influenciaram a decisão. É um princípio jurídico fundamental o de que delegado, procurador ou juiz não pode ser inimigo da parte. Dada a sua condição humana, é enorme a possibilidade de aproveitar a oportunidade para prejudicar a quem detesta. Além disso, logo após a prisão de Lula e consequente vitória de Bolsonaro na eleição, Moro tornou-se ministro da justiça do novo governo, escancarando de vez seus objetivos políticos.

Dada a importância do evento, inclusive histórica, vale repetir: em uma decisão, o Supremo declarou que Moro não possuía competência territorial para conhecer do processo penal oposto em face de Lula; logo após, em outra decisão independente da primeira, o mesmo Supremo declarou que Moro agiu no processo com suspeição. Resumindo: o STF, em duas oportunidades distintas e pela dicção relatorial de ministros diferentes, sendo um deles reconhecido simpatizante do juiz e da operação, devolveu a Lula sua condição de inocência. Mil e sessenta e seis dias após o início da pantomima judicial, Lula voltou a ser um cidadão brasileiro livre e inocente de qualquer acusação. Sim, isso mesmo: inocente. Uma inocência que não é relativa, nem condicional, mas absoluta. Uma inocência que emana direta e literalmente do texto constitucional, como transcrito acima. Destaco: não há controvérsia jurisprudencial quanto a isso. Isso porque absolutamente todas as pessoas que estejam no território brasileiro, sejam nacionais ou estrangeiros, são consideradas legalmente inocentes até que sobrevenha sentença penal condenatória transitada em julgado. Essa definição inclui as que eventualmente se encontrem respondendo a processos criminais. Trata-se de uma garantia do estado de direito: inexistindo condenação lícita proferida pelo judiciário, que há de ser fundada em prova inequívoca de culpa a cargo do Estado, a pessoa é considerada inocente.

A condição de inocência independe sequer de sentença absolutória que declare expressamente a inexistência do fato delituoso atribuído ao processado ou que ele não tenha praticado o ato. Basta que declare a inexistência de prova, a cargo do acusador, que é o Ministério Público. Se a conclusão do processo é que o MP não logrou provar a culpa, o acusado é inocente e pouco importa a convicção pessoal de cada um. A garantia de inocência não advém somente da Constituição e tampouco busca beneficiar casuisticamente o cidadão Lula. O truísmo jurídico “todos são inocentes até prova em contrário” possui uma imensa dimensão, tratando-se de conquista civilizatória de toda a humanidade, contra possíveis desmandos e arbitrariedades praticadas por um Estado muito mais forte do que o indivíduo. Por isso mesmo, constitui um direito humano fundamental.

Quanto a Lula, sequer há sentença, pois os processos foram anulados. Não existindo condenação em face dele, tampouco há prova de culpa, pois a produção de prova é um antecedente necessário da condenação. Enfim, Lula é inocente para todos os efeitos legais e quem o acusar de algum crime pode, inclusive, ter a conduta tipificada, em tese, no crime de calúnia, caso em que passa a ter o ônus de provar que ele é culpado, sob pena de condenação. Concluindo: dizer que Lula é inocente não é fanatismo, mas cumprimento rigoroso do que diz a lei.

As recentes decisões do STF recuperam parte da reputação do judiciário, destroçada nos anos de lawfare sofridos por Lula. Claro que são incapazes de ressarcir o incalculável prejuízo moral, espiritual, sofrido por ele e por sua família. Foram mil e sessenta e seis dias até o retorno à inocência plena, com cassação de sua liberdade de locomoção por quase dois anos. Durante aproximadamente três anos (dois anos, onze meses e seis dias), Lula foi submetido a uma pantomima judicial cruel, com os operadores da Lava Jato produzindo requintes de sadismo. Houve apreensão de objetos de crianças da família. Negativa de comparecimento a funerais da família ou permissão em cima da hora, que, na prática, era impeditiva. Nessa ocasião, segundo as gravações das conversas do grupo de membros do MP no aplicativo de mensagens Telegram, um importante procurador da Lava Jato teria dito, de Lula, que “o safado só queria passear”. É isso: uma pessoa amada por Lula, de sua família, morreu, seria velada e enterrada, mas “o safado só queria passear”. Lula foi submetido uma desnecessária condução forçada, com a Lava Jato convocando a imprensa para noticiar e amplificar o constrangimento. Quanto a esse último exemplo, há quem sustente que o plano maquiavélico era, inclusive, provocar uma humilhação ainda maior, algemando-o diante das câmaras de televisão e colocando-o, à força, no avião para uma audiência em Curitiba; aparentemente, o despautério era de tal magnitude, tão absurdamente injusto e descabido, que a ação foi impedida por um movimento das forças armadas presentes no aeroporto de Congonhas; o depoimento de Lula acabou sendo realizado no próprio aeroporto. Esses são exemplos, ocorreram outras humilhações dessa dimensão, todas absolutamente desnecessárias e que ofendem o espírito civilizatório que deveria nortear a atuação de respeitáveis representantes do sistema judicial, ao menos daqueles que respeitáveis se consideram. Mil e sessenta e seis dias de cerco judicial despropositado, algo possivelmente jamais visto anteriormente. Posso dizer que não lembro de evento sequer parecido com isso, nem consegui localizar em pesquisa, no que concerne a políticos relevantes, muito menos quando se fala de um ex-presidente da república por dois mandatos e que saiu com alto índice de aprovação popular. Ainda que alguma razão tivesse (e, pelas “provas” noticiadas, aparentemente não tinha), a Lava Jato desprezou por completo os sentimentos que a população nutria pelo então acusado. No mínimo, o processo deveria ter sido conduzido de modo mais cauteloso, observando estritamente os ditames da lei, os direitos de uma figura pública tão significativa na história recente do país. A lei não é diferente para Lula, mas as consequências sociais e políticas que podem resultar de uma injustiça (ainda que aparente) por ele sofrida certamente são, não se pode negar. A lei exige cautela do juiz no processo. Não somente isso não ocorreu, como, pelo contrário, os direitos de Lula parecem ter sido desprezados de uma forma que não ocorreria em relação a outro acusado. Assemelha-se a uma traquinagem de crianças: “Ei, isso aqui pode causar problemas sérios nas ruas do Brasil e polarizar a população, causando distúrbios, embates físicos e dissensões graves entre amigos e familiares. Quem sabe até abala a economia. Oba! Então vamos fazer!”.

A decisão do Supremo não é capaz de restituir a liberdade perdida, muito menos fará desaparecer da memória uma infâmia por natureza indelével. Eventual indenização por dano moral por parte do Estado é devida e cabe persegui-la, porém apenas como demonstração de irresignação e para efeito pedagógico. Indenização alguma será capaz de ressarcir um prejuízo dessa amplitude na honra, no amor-próprio e na autoimagem da pessoa. A família Lula da Silva não deixará de sentir a dor íntima advinda do abalo psicológico causado por uma perseguição incansável do sistema policial e judiciário. Tiveram que suportar, estoicamente, por tantos minutos, tantas horas, tantos dias, tantas semanas, tantos meses, tantos e longos anos, um assédio institucional absolutamente injusto. Cada minuto preso às amarras da injustiça é um tormento em multiplicação geométrica para qualquer um que sofra a apreensão espiritual causada por ameaças à liberdade, integridade física ou vida, seja essa violência ou perseguição perpetrada contra si ou contra quem se ama. No caso de Lula, era contra ele, sua esposa, seus filhos e seus irmãos. Dona Marisa não ressuscitará da morte precoce, possivelmente decorrente de um estresse emocional elevado e prolongado. Aliás, a morte de familiares de Lula era motivo de regozijo e deboche entre os membros da Lava Jato, segundo as gravações do Telegram. Um horror! E vindo de quem veio, cuja obrigação funcional era garantir o direito do cidadão, pior ainda. Tudo isso decorrente de um processo que, finalmente o STF declarou, era fundamentalmente injusto desde o início, manipulado por um juiz parcial. Não é uma simples opinião ou sectarismo; há decisão judicial declarando essa condição. Nesse momento, inverteram-se os papéis: contra Lula, não há mais decisão judicial desfavorável; agora, há contra Moro. Ao persistir num processo no qual era cristalinamente suspeito e incompetente, não agiu como um magistrado, mas como algoz. O propósito político ficou evidente, desde o início, para os intelectualmente honestos.

Todavia, a anulação dos processos também impediu que a defesa de Lula alcançasse o objetivo que perseguiu incansavelmente desde o primeiro dia desse processo penal fajuto: a absolvição por inexistência da conduta articulada no libelo contra Lula. A absolvição jamais foi declarada e possivelmente jamais seria se mantidas as condições processuais viciadas existentes até a anulação dos processos. Embora Lula tenha obtido o status de inocência, o que é muito melhor do que a situação anterior, a anulação não alcança o mérito, não declarando expressamente a inexistência dos fatos ou de qualquer ato ilícito praticado pelo ex-presidente. Essa espada de Dâmocles sobre a honra de Lula persistirá, caso os processos caminhem para o que parece inevitável, a prescrição. Isso será utilizado como retórica política, no sentido de que a inocência dele nunca foi provada. Sofisma puro, pois ninguém precisa provar a própria inocência, que é presumida para toda e qualquer pessoa. Se o Estado, a quem compete tal ônus, não provou a culpa, a condição de inocente se impõe. Porém, o proselitismo político é incansável, nunca para. A partir da liberdade e da inocência de Lula, surge a falácia do Lula neoliberal, sobre o que pretendo discorrer em um próximo artigo. Até lá.

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