Encontra-se
em andamento uma campanha pelo fim do voto das pessoas que recebem o
bolsa-família. Para quem pensava já ter visto de tudo em termos de
radicalização política, ausência de sensibilidade social e
preconceito social, ei aí um exemplo da criatividade humana em
matéria de reduzir a importância do outro.
Interessante
observar que, nas redes sociais, as pessoas atiram-se ao hábito,
inclusive enfadonho para os receptores, de enviar mensagens de amor,
de solidariedade, de fraternidade, de paz e de sensibilidade. São
incontáveis, praticamente infinitas, mensagens de fundo religioso,
cheias de compaixão e ternura. Uma beleza de mundo esse, o mundo das
mensagens das redes sociais.
Um
extraterrestre que pretendesse conhecer a natureza da humanidade
somente através da interceptação das mensagens e informações que
navegam através das redes sociais, sem possibilidade de contato
imediato com a realidade, lendo essas mensagens chegaria à conclusão
inequívoca de que os humanos são seres praticamente perfeitos, uma
espécie pacífica ancorada solidamente em princípios de serenidade
e altruísmo. Certamente ficaria maravilhado com o mundo humano, uma
gigantesca irmandade. Dificilmente o próprio mundo do extraterrestre
seria igualável ao dos humanos, muito superior em grandiosidade de
espírito.
Todavia,
para utilizar uma expressão comum dos jovens, SQN (só que não).
Lastimavelmente, é tudo ilusão, falsidade e hipocrisia. Uma pena.
Sequer
há necessidade de adentrar na crítica das idiossincrasias fáticas
do mundo real, palpável, no qual bilhões de seres humanos
encontram-se completamente excluídos dos benefícios sociais, como
alimentação, moradia, educação, segurança e saúde, para afirmar
a existência de hipocrisia e insensibilidade social de parcela
considerável dos privilegiados que podem utilizar as redes sociais.
Grande
parte das mesmas pessoas que compartilham maçantemente mensagens de
amor, não hesita um segundo antes de compartilhar uma mensagem de
ódio, preconceito e elitismo, como essa que busca cassar o direito de
voto dos necessitados, supostamente ancorados na boa intenção de
“consertar” a política brasileira. Historicamente sempre
existiram pessoas aptas a construir discursos racionais, com
fundamentos até humanitários, para a manutenção de indignidades,
como a escravidão.
Atualmente,
especificamente no Brasil, qualquer iniciativa do PT tem que ser
combatida incansavelmente, mesmo ao custo de tornar mais miserável a
miséria de milhões de brasileiros. É o pragmatismo político fundado na insensibilidade.
No
caso desses teóricos da "ignorância política inquestionável de
quem recebe benefício social", afirmam com fervor que o bolsa-família
torna as pessoas preguiçosas e dependentes do Estado. Discorrem com
firmeza sobre vários motivos suficientes para justificar que o
miserável, esse ser humano que surpreendentemente insiste em
sobreviver mesmo dispondo de menos de um dólar por dia, não receba
setenta reais por mês dos cofres públicos.
Alguns
confessam inclusive sentir um certo incômodo por ter de demonstrar
algo tão evidente, óbvio, sendo obrigados a discorrer sobre o
assunto à mesa, enquanto, com classe e elegância, degustam uma
deliciosa lagosta acompanhada por um excelente vinho branco em algum
restaurante fino e exclusivo.
Outros,
tão empenhados estão nessa infame campanha de retirar o direito de
voto dos pobres, que não aceitam perder tempo, realizando sucessivas
ligações de um reluzente Iphone para arregimentar amigos seletos ao
mesmo tempo em que dirige sua maravilhosa e reluzente SUV recém
adquirida. Militantes aguerridos, também estão nas redes digitando
freneticamente em seus caros Ipad's.
São
valentes e heroicos tal e qual guerreiros americanos pilotando caças
de ponta e lançando mísseis numa pequena tribo indígena a cinco
mil metros de altura.
Vale
relembrar o significado da palavra empatia a partir de transcrição
do dicionário online Michaelis: “na psicanálise, estado de
espírito no qual uma pessoa se identifica com outra, presumindo
sentir o que esta está sentindo”. E também a noção de
alteridade, vinculada ao entendimento de que existem coisas que são
próprias do outro. Basicamente significa respeitar alguém pelo que
ele tem de diferente em relação a você.
Para
os militantes dessa campanha suja, parece claro que, se a pessoa é
pobre e está recebendo ajuda do governo, então necessariamente é,
ao lado de ignorante política, também preguiçosa, leniente e
acomodada. O pensamento padrão típico dos preconceituosos elitistas
é: "Não conheço essa gente, mas essa é a natureza do pobre
mesmo, não é? Ter um monte de filhos para aumentar o valor do
benefício e depois gastar tudo em cachaça". Essa suposta
“convicção política” é apenas uma fachada sob a qual se
esconde um vácuo de fraternidade, empatia e alteridade em relação
aos mais pobres.
O
infame discurso ergue um muro da vergonha, utilizado por pessoas
privilegiadas, ricas ou classe média, não privadas das condições
mínimas de dignidade, como argumento para o fim de um sistema de
distribuição de renda que induvidosamente beneficia miseráveis e
pessoas extremamente pobres. Afinal, elas sabem, pobre só é bom se
permanecer pobre, criando um inestimável excesso de mão de obra.
Pobre bom é aquele que aceita trabalhar por qualquer vintém.
Não
se pode olvidar do afago no ego dos privilegiados possibilitado pela
existência de uma multidão de miseráveis, uma visão que evidencia
o quão prazeroso é o bem estar possuído, como são especiais por
gozar de bens caros à humanidade e raros, não acessíveis à ralé.
Sem a miséria comparativa não se sentiriam tão especiais.
Ainda
que se concedesse uma visão benévola a essa campanha, entendendo-a
permeada de boas intenções, isso conduziria à inevitável
conclusão de o que ela oculta é uma brutal ignorância sobre o
programa bolsa-família e seus objetivos, bem como sobre a essência
da democracia.
Democracia,
em seu sentido mais pujante, necessariamente implica a possibilidade
de todos os membros de uma dada sociedade influírem nas decisões
políticas dessa sociedade. Sob tal perspectiva, ainda que um projeto
venha a beneficiar uma parcela da população, cabe a todos decidir,
pois isso é o que justifica a democracia. Não cabe, por exemplo,
excluir os indígenas de uma votação sobre um projeto a respeito de
uma área florestal que os beneficiaria ou prejudicaria enquanto
coletividade.
Exatamente
pelo mesmo motivo, trata-se de arrematado disparate pretender que o
miserável, que necessita de ajuda financeira, não possa votar para
manifestar o seu desejo, como cidadão, de manutenção de um governo
que adota uma política de transferência de renda. Em outras
palavras, trata-se de exigir que somente participem da decisão sobre a
manutenção ou não de um determinado programa de governo os
cidadãos que não tenham seus interesses atingidos por esse programa.
Grosso modo, é como se todos os eleitores da região norte fossem
excluídos de um plebiscito sobre o destino da Amazônia.
Resta
indagar que tipo de atividade estatal não é capaz de atingir,
direta ou indiretamente, todo o povo da respectiva nação. De que
modo, ainda, seriam identificáveis os interessados ou não nessa
atividade? No caso do bolsa-família, por exemplo, os pequenos
comerciantes dos municípios pobres certamente possuem interesse na
manutenção do programa, pois a renda que dele advém aumenta suas
vendas. Estariam eles também impedidos de votar? Afinal, são
indiretamente beneficiados pelo programa.
Que
espécie de democracia pretende o tipo de pessoa que incentiva uma
campanha como essa? Talvez simplesmente abomine a democracia e tenha
que disfarçar seus pendores tirânicos sob a capa sofista de um
discurso de depuração democrática.
A
lógica oculta que orienta os adeptos dessa campanha é a de que, a
partir do momento em que os excluídos do sistema começam a votar
contra os interesses dos favorecidos, devem ser eliminados do
escrutínio.
No
passado, no mundo e nesse país, a elite impunha o voto censitário,
somente admitindo o voto por pessoas de determinado gênero (homem),
cor (branca), e renda (alta). A campanha contra o voto dos excluídos
envolve um certo saudosismo desse passado antidemocrático. Dois
séculos atrás o Iluminismo nos salvou desse modelo de barbárie.
Parece que o surgimento de um neo-iluminismo se impõe contra a
escalada dos novos bárbaros.
E
há outro ponto a considerar: voto de cabresto, por meio do qual o
eleitor vota por temer sofrer violência física ou alguma perda
material, somente funciona na presença do medo. Se não houver o
prévio medo, não há como impor a votação dirigida. Nenhum
partido hoje teria coragem de afirmar em campanha que excluiria o
bolsa-família do guarda-chuva assistencial do Estado. Pelo
contrário, o principal partido adversário do PT, o PSDB, defende
com unhas e dentes que é o criador do bolsa-família e que, não
somente irá mantê-lo, como melhorá-lo, ampliando as vantagens.
Basta rememorar as campanhas de Alckmin e de Serra para a
presidência.
Portanto,
seja qual for o partido vencedor, um novo governo certamente irá
manter o programa. Não somente pelo temor de que uma decisão de
extinguir o programa redunde na opção dos eleitores por lhe
conferir um mandato só, como também porque o programa é apreciado
e elogiado no mundo inteiro como exemplo de política de
transferência de renda. Vale a pena manter, pois custa pouco no
orçamento e é caro em qualquer biografia.
Entendido
que todos os partidos, ao menos no discurso, irão manter o
bolsa-família, esvai-se qualquer possibilidade de temer o eleitor
perder a renda, donde se conclui que cessa o efeito voto de cabresto.
Por
outro lado, cabe a reflexão: se é possível entender que o pobre
vota no partido político da situação porque recebe ajuda do
governo, o que dizer sobre os empresários que recebem subsídios,
juros reduzidos no BNDES, isenção fiscal ou qualquer tipo de
benefício?
Claro
que os ricos também possuem interesse na eleição desse ou daquele
candidato que lhes pareça mais inclinados a manter suas regalias.
Pela lógica da campanha anti-eleitor pobre, os empresários também
deveriam ser incluídos no rol dos eleitores impedidos de votar. Não
há diferença essencial entre receber benefício fiscal ou dinheiro
subsidiado e receber benefício do bolsa-família. Ambos significam
receber dinheiro do governo.
Aliás,
há uma diferença, sim, embora não de essência, mas de grau. Os
empresários não recebem a "mixaria" destinada aos pobres,
mas bilhões e bilhões de reais. Os ricos recebem do orçamento
federal o valor equivalente a quinze vezes o que é pago de
bolsa-família. Quinze anos dos pobres equivale a um ano dos ricos.
Todavia,
pelo que se percebe do posicionamento dos adeptos dessa campanha os
ricos, porque são ricos, podem continuar votando. A jogada visa
somente os pobres.
Pausa
para reflexão.
Há
um imenso erro de avaliação na interpretação de que o
bolsa-família institucionalizaria o voto de cabresto. Existem
estudos acadêmicos sérios que demonstram justamente o contrário,
ou seja, indicam que o benefício está acabando com o coronelismo
regional, está pondo fim ao direcionamento do voto, justamente o que
essa campanha supostamente tenta combater.
Um
desses estudos está relatado no livro “Vozes do Bolsa Família”,
dos pesquisadores da Unicamp Walquíria Leão Rego e Alessandro
Pinzani, que, juntos, pesquisaram durante cinco anos nos sertões
nordestinos, entrevistando famílias. Veja matéria sobre o livro na
Folha de São Paulo através do link: Vozes do Bolsa Família.
Como
dito antes, a campanha é uma fachada. O que ela esconde, o que
subjaz impronunciável, é um indesculpável inconformismo ante a
melhoria na renda dos mais pobres. Por quê? Porque conferiu aos
pobres um maior fôlego para, dentre outras coisas, negociar
condições de trabalho mais dignas, melhores salários.
Dentre
os que aderem a essa vil campanha, certamente são muitos os que, no
fundo, possuem como intuito extirpar do miserável, não exatamente
essa pequeníssima ajuda que o governo lhes dá, mas a capacidade
recém adquirida de negociar melhor o próprio destino.
É
uma campanha francamente contra os pobres, cruel, desumana.
Entretanto,
não constitui uma desumanidade especial do brasileiro remediado ou
rico, mas do ser humano médio do mundo inteiro. Na Etiópia faminta,
vozes como essas provavelmente se levantariam contra uma eventual
distribuição de comida.
Quanto
ao Brasil, eis um fato histórico que aponta nessa mesma direção:
quando o país começou a refletir seriamente sobre a libertação de
escravos, vozes abalizadas, todas da elite, levantaram-se contra a
abolição. O discurso racional, e absolutamente hipócrita, invocava
piedade pelos escravos. Diziam os que se opunham à extinção da
escravidão, sérios, compenetrados, provavelmente olhando para o céu
em busca de confirmação divina, que os escravos não conseguiriam
sobreviver sem os senhores de engenho a lhes fornecer habitação e
alimentos.
A
atual campanha contra o voto dos eleitores pobres incide nessa mesma
estupidez e sordidez.
Não
há dúvida de que constitui um direito de cada pessoa apoiar essa
campanha, segundo suas próprias convicções. Porém, o mínimo que
se espera de quem adira é que se abstenha de divulgar mensagens
hipócritas, religiosas ou não, de amor ao próximo, de
fraternidade, de altruísmo, de um mundo melhor, mais justo e
equânime e coisas tais.
Que
seja autêntico, assumindo a própria natureza egoísta, de direita,
elitista e contra os pobres.
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