Curiosamente,
o povo está indo às ruas com menos convicção para exigir saúde e
educação de qualidade, do que em prol de uma duvidosa prerrogativa
para o Ministério Público: o de investigar crimes.
Supostamente,
entendem os manifestantes não fazer mal que duas instituições
governamentais possuam a mesma atribuição, Polícia e MP, em
evidente superposição. Talvez pensem assim por imaginar que a
Polícia é corrupta e o MP não, de modo que os políticos corruptos
terão uma vida mais árdua se for o MP a investigar.
Embora
seja correto afirmar que casos de corrupção são mais comuns na
polícia, isso, porém, decorre de um prosaico motivo: é a polícia
que investiga quase cem por cento dos crimes praticados no país. A
quantidade torna mais fácil a percepção da corrupção.
Além
disso, há um outro elemento: embora a Polícia Militar não seja
judiciária, ou seja, não participe da investigação criminal, é
com ela que as pessoas lidam no dia-a-dia, inclusive participando das
pequenas corrupções praticadas por dirigir embriagado, porte de
arma e coisas afins. Apesar de partícipe do crime, na condição de
corrompedor, o comum do povo fica indignado por ter desembolsado
dinheiro em virtude de um ilícito visto por ele como "pequeno",
"sem importância". A exigência ética é somente para os
outros. Em sua visão distorcida e preconceituosa, "a polícia
tem que estar subindo morro atrás de bandido e não perseguindo um
cidadão trabalhador". Claro que o cidadão poderia ter se
negado a pagar propina e aceitado o cumprimento da lei, com
encaminhamento à delegacia e, quem sabe, prisão ou multa. Indignado
sem razão, parte para a generalização barata de que toda a polícia
é corrupta.
Aliado
a isso, a população pouco sabe sobre o MP e sobre os casos de
corrupção que envolvem essa instituição. Há pouco ouviu-se falar
de licitação feita pelo MP e dirigida em favor da Apple, para
aquisição de tablets. Quem quiser acreditar em interesse na
tecnologia, e não em dinheiro por trás dos panos, que acredite.
Quem quiser acreditar que o bilionário Daniel Dantas foi excluído
do processo do mensalão por convicção do Procurador Geral da
República, que é do MP, que acredite.
O
juiz federal João Bosco Costa Soares da Silva, do Amapá, acusou o
MP local de “nebulosa e obscura utilização de recursos públicos
de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado entre a empresa
MMX – de propriedade de Eike Batistas e os membros do Ministério
Público Estadual e Federal, no valor de R$ 8 milhões”.
Existem
outras acusações de corrupção contra o MP.
Não
é caso de acusar o MP, como instituição, de ser corrupta, mas de salientar que se trata de uma instituição como todas as
outras, em nada diferindo das demais quanto à possibilidade de ser
envolvida em corrupção. Como qualquer instituição humana, o MP é
formado por pessoas honestas, mas também pelas corrompíveis e
corrompedoras.
Aparentemente,
o mote para esse movimento popular contra a PEC 37 é a vontade de
punir os agentes públicos corruptos. Um nobre objetivo, sem dúvida.
Contudo, é bom lembrar que a maior parte desse tipo de investigação
é de competência da Polícia Federal e, até onde se sabe, a
Polícia Federal realizou inúmeras operações, todas batizadas com
nomes originais, como Sanguessuga, Satiagraha, Cavalo de Tróia e por
aí vai, justamente com esse objetivo. Se dependesse exclusivamente
da Polícia Federal, portanto, muitos agentes políticos estariam
presos.
Muitas
vezes, todavia, quando essas operações resultariam em prisões de
pessoas importantes, o próprio MP ou a Justiça conseguia localizar
alguma "falha" na investigação que invalidava totalmente
as provas produzidas. Ou seja, a polícia cumpriu ou tentou cumprir o
seu papel e os criminosos somente estão soltos, ou por deficiência
no aparelhamento policial, ou por decisões equivocadas ou
mal-intencionadas do próprio Ministério Público ou da Justiça. A
título de exemplo, tomem-se os casos do mensalão do PSDB em Minas
Gerais e da Operação Satiagraha, onde se viu livre um dos
principais envolvidos, o bilionário banqueiro Daniel Dantas.
Deficiência no aparelhamento da polícia, todavia, deve ser resolvida com previsão orçamentária, de forma nenhuma com transferência de
atribuições para outro órgão.
O
que o país precisa não é de um MP que, excedendo a sua função
precípua, já mal e mal cumprida nos Estados, também se veja na
contingência de substituir a polícia nas investigações. A
necessidade pública envolve um MP que cumpra o seu papel articulador do
processo criminal, atuando de forma isenta e disposto a corrigir os
defeitos da polícia. É perigoso arriscar a possibilidade de o MP
vir a ser contaminado pelos mesmos vícios que hoje contaminam a
polícia.
Nas
palavras do eminente constitucionalista Luis Roberto Barroso,
recém-nomeado para o STF:
“Sem
a pretensão de uma elaboração sociológica mais sofisticada, e
muito menos de empreender qualquer juízo moral, impõe-se aqui uma
reflexão relevante. No sistema brasileiro, é a Polícia que atua na
linha de fronteira entre a sociedade organizada e a criminalidade,
precisamente em razão de sua função de investigar e instaurar
inquéritos criminais. Por estar à frente das operações dessa
natureza, são os seus agentes os mais sujeitos a protagonizarem
situações de violência e a sofrerem o contágio do crime, pela
cooptação ou pela corrupção. O registro é feito aqui, porque
necessário, sem incidir, todavia, no equívoco grave da
generalização ou da atribuição abstrata de culpas coletivas.
“Pois bem: não se deve ter a ilusão de que o desempenho, pelo
Ministério Público, do papel que hoje cabe à Polícia, manteria o
Parquet imune aos mesmos riscos de arbitrariedade, abusos, violência
e contágio”.
Vale
lembrar que esse papel de agente da investigação foi atribuído ao
MP na Itália, por ocasião da Operação Mãos Limpas. Refletindo
sobre as palavras de Barroso, veja o que sustenta o Prof. José
Afonso da Silva:
"A
esse propósito, não é demais recordar o exemplo italiano. O
Ministério Público brasileiro ficou muito entusiasmado com a
atuação dos Procuradores italianos na chamada operação “mãos
limpas”, que teve inequívoco sucesso no combate aos crimes
mafiosos. Como se sabe, na Itália vigorava até 1989 o juizado de
instrução, quando foi suprimido, e os poderes de inquérito e de
investigação concentraram-se nas mãos do Ministério Público.
Essa transformação proveio da legislação anti-máfia e teve
impacto imediato, mas não tardou a surgirem os abusos de poder. O
Procurador Di Pietro, o mais destacado membro do Ministério Público
de então, teve que renunciar ao cargo em conseqüências das
denúncias de desvio de poder; assim também se deu com Procuradores
na Sicília. Então, a suposição do parecer do Prof. Luís Roberto
Barroso é algo que a experiência já provou."
Por
conta de tudo isso, afigura-se imprescindível que o MP mantenha o
seu papel histórico, não de mero acusador, mas de fiscal da lei.
Quando a polícia investiga, é o MP que contém os abusos que
eventualmente são praticados. Se for o próprio MP a investigar ele
passa a ser sócio da própria investigação e dificilmente irá
reconhecer um erro ou algo pior, até por vaidade intelectual. Assim,
se houver abuso, quem o conterá?
Em
princípio, num Estado de Direito, quem investiga não pode acusar e
quem acusa não pode investigar, sob pena de falta de isenção de
ânimo, de impessoalidade.
Falando
sobre a PEC 37, que apoia, assim se manifestou o advogado Marcos
Costa, presidente da OAB-SP:
"A
PEC não quer restringir os poderes do Ministério Público, cujo
papel é relevantíssimo e está claramente estabelecido pela
Constituição Federal de 88. Na verdade, propõe restabelecer a
imparcialidade na fase de investigação, segundo a qual a Polícia
Judiciária (Civil e Federal) investiga, o Ministério Público
denuncia, a Advocacia faz a defesa e o Judiciário julga". Ainda
segundo o advogado "quem acusa não pode comandar a
investigação, porque isso compromete a isenção, quebra o
equilíbrio entre as partes da ação penal".
Um
detalhe importante, que não ser posto de lado, é que as polícias
civil e federal são treinadas para investigar, enquanto o MP não.
Basta ao candidato a promotor possuir diploma de bacharel em Direito,
o que não qualifica ninguém para a investigação criminal.
Cabe
uma última reflexão sobre uma situação hipotética: se alguém é
preso pela polícia, com acusações falsas, o fato pode ser
denunciado ao MP que certamente tomará as providências adequadas
para corrigir a arbitrariedade; todavia, se ante as mesmas
circunstâncias, ele é preso a partir de investigação iniciada e
dirigida pelo MP, a quem se poderia recorrer? À Polícia, que está
indiretamente subordinada ao MP? Ao Judiciário, que, em princípio,
somente pode falar nos autos da própria ação penal patrocinada
pelo MP e que, ademais, possui laços de afinidade com o MP? Ao
próprio MP, que, como os demais órgãos, costuma agir com espírito
de corpo, protegendo seus pares? Seria interessante uma profunda
reflexão sobre isso antes de ser contra PEC 37.
Por
fim, deve ser lembrado que promotores, assim como os juízes, não
possuem mandato e não são eleitos, ou seja, não é possível
retirá-los do poder se excederem desse poder de investigação que
querem lhe atribuir.
No
mínimo, vale uma reflexão.
Assunto velho que só li hoje. Diz coisas que eu, sem ser advogada nem nada, já imaginava. Agradeço portanto pelos esclarecimentos.
ResponderExcluirObrigado, DePaula, por visitar o blog. De fato, o post é antigo, da época em que o assunto estava quente. Ficaria honrado se você comentasse um post mais recente. Abraços. Marcio Valley.
Excluir