quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O bem e o mal



Ninguém sabe exatamente o que é a vida. Ninguém sabe exatamente o que é a morte. Ninguém sabe sequer se vida e morte existem de fato. Tudo pode não passar de ilusão, de ficção. Essa ideia, aliás, foi explorada no filme Matrix.
Vamos supor, todavia, que tudo que nos cerca não seja uma miragem e exista de fato. Pense bem: todos os átomos que o compõem sempre estiveram aqui. Você, no que diz respeito à matéria que compõe seu corpo, é eterno. Quando Carl Sagan dizia que somos feitos de pó de estrelas era exatamente isso que ele pretendia afirmar, a nossa imortalidade material. Por algum motivo inexplicável, certo dia átomos que se encontravam dispersos se juntaram, formaram um corpo e ganharam algo intangível chamado “consciência”. Antes de um corpo se formar, essa consciência não existia ou não podia interagir com o mundo. Depois da morte do corpo, quando os átomos voltam a se separar, a consciência novamente deixa de existir ou de interagir com o mundo.
Por toda a eternidade, mesmo quando nada mais existir, quando talvez restar apenas uma minúscula bola fundamental, como a que já existiu antes do Big Bang, todas as partículas corporais que você possui agora, cada uma delas, ainda existirão. Quanto à sua alma, quanto à sua consciência... quem sabe?
Então, o que estamos fazendo aqui exatamente nesse momento? Por que nascemos e morremos se nascer e morrer parece tão insignificante para os desígnios do universo?
Essa resposta, obviamente, somente pode ser alcançada através da fé. Contudo, algumas coisas parecem bastante óbvias. Por exemplo, a única coisa que aparentemente jamais esteve presente no universo e que é fruto exclusivo de cada um dos seres humanos já nascidos ou por nascer é, justamente, essa coisa imaterial chamada mente, alma, consciência, espírito ou seja lá que nome se queira dar a essa vontade que temos em relação a nós e ao que nos cerca. Tudo o mais é comprovadamente eterno e pertence a esse mundão chamado cosmos. A única exceção, o único componente transitório desse universo, que aparentemente aqui só permanece com a vida e que depois deixa de existir ou vai para um outro lugar desconhecido, é essa consciência.
Logicamente, existe a possibilidade de o universo estar contido na consciência e não o contrário, mas, presumindo-se que a nossa percepção esteja correta e que a consciência faça parte do universo e não o inverso, então, me parece que essa é a coisa mais importante que existe para o ser humano. Em relação a tudo o mais.
Justamente a coisa mais fugaz, mais fugidia, mais delicada, menos palpável e, por isso mesmo, mais importante, deve ser preservada, nossas almas, nossas consciências. Independentemente de qualquer fé, de qualquer religião, de qualquer rito, de qualquer solenidade.
Como, porém, preservar nossas consciências?
Quando uso o verbo preservar não estou, obviamente, utilizando-o em sua acepção popular de conservar no estado em que se encontra. Se algo está deteriorado, não adianta mergulhá-lo em formol, isso somente irá perpetuar o estrago.
Refiro-me a abrigar nossas consciências do mal, do dano, de efeitos maléficos que possam incidir sobre nossas almas. E isso nada tem a ver com espiritualidade de religião, de cartilha, até porque ser religioso, em princípio, nada tem a ver com professar uma religião.
Esse discurso, até aqui, baseia-se em algo puramente racional: a constatação de que há uma clara distinção entre matéria e mente e que a matéria possui duração comprovadamente infinita (tanto quanto infinita é a duração dos átomos do universo), enquanto a mente é formada a partir de algo completamente desconhecido pelo homem e de duração no tempo igualmente desconhecida. Por ora, para todos os efeitos científicos, a mente é algo completamente imaterial, embora esteja abrigada e obtenha sua fonte de energia da matéria.
Pois bem, então devemos proteger-nos do mal. O mal aqui não representa o diabo, o inferno, leviatã, satanás, demiurgo, gênio do mal, ou seja lá que mítica figura demoníaca utilize-se para personificá-lo. O mal é uma ideia oposta a de bem, sem qualquer personalização, antropomorfização, sem qualquer idealização. O mal existe sempre onde o bem não está. A ausência da ideia do bem é ocupada pela ideia do mal. Ou seja, não existe o nada absoluto. Existe o bem e existe sua ausência, o mal.
Alguém poderia indagar, e no espaço, no cosmos, onde nada existe, nenhum planeta, nenhum astro, nada, é ali que está o mal? Não, mesmo ali, há algo e esse algo é o bem.
Sem querer adentrar na questão da matéria escura que preenche todo o universo invisível, o que já afastaria essa questão do vazio espacial, o fato é que, ali, naquele suposto espaço vazio, existem forças físicas atuando infinitamente, forças gravitacionais, forças eletromagnéticas e quetais. Ali já existe o que define o bem: o equilíbrio natural. Portanto, em qualquer lugar do universo, o mal será o contrário disso, que vem a ser a falta de equilíbrio natural.
Chamo consciência àquilo que se convencionou denominar "alma" e de equilíbrio o que comumente se chama "bem".
O que é o equilíbrio natural? O equilíbrio natural é constituído de tudo que é necessário para que a existência se processe sem perturbações.
Sempre que os caminhos da natureza se desenvolvam sem interferência da consciência para além da necessidade do corpo, o bem está ocorrendo. Por outro lado, sempre que os caminhos da natureza são desviados, de alguma forma, pela atividade humana consciente que dela retira além do minimamente necessário para a manutenção da vida humana, então o mal se processou.
E por esse caminho sinuoso e não muito claro, tenho que reconhecer, chega-se ao que entendo como minha verdade: o mal é algo inexistente na natureza e somente existe a partir da existência da consciência, humana ou não.
Toda a criação universal, com exceção da consciência, é o bem e está sempre em equilíbrio enquanto não afetada pela consciência.
Então a consciência é um mal? Respondo que não.
A consciência é a razão da existência do mal porque somente através dela ele é percebido. Sem a consciência, existem apenas os fatos da natureza e eles são apenas causa e efeito, sem dimensão moral. O fato natural que destrói é o mesmo que cria.
A consciência produzirá ou não o mal de acordo com a maneira pela qual descreverá o evento. Seria impossível a existência do mal se não pudesse a consciência descrevê-lo.
A criação, em si, não pode ser um mal. Uma chama ou uma pedra, por si, não podem representar o mal.
Então, se o mal é inexistente na natureza e se o ser humano é parte da natureza, como pode o mal realmente existir?
Será que somente existe o bem e o mal é uma criação, uma invenção, humana? Será o mal apenas um modo especial de descrever o bem da natureza que não é compreendido em sua inteireza? Será que o mal é algo somente ideal, que persiste em nossas consciências como um amigo imaginário, fantasioso, da criança porque talvez precisemos desse amigo imaginário?
Então, se a conclusão é que o mal não existe, não há necessidade de nos protegermos dele. Ou há?
Por incrível que pareça, não existe nenhum paradoxo na afirmação de que o mal não existe naturalmente, mas ainda assim é necessário que acautelemos contra ele.
Ocorre que o ser humano possui a incrível habilidade de transformar em realidade o que é apenas mental. Se, por um lado, afirmo que o mal não existe na natureza, por outro lado também afirmo que, embora isso, ele existe efetivamente em nossa consciência e que sua existência meramente ideal é ainda assim prejudicial para os humanos, tanto no que concerne ao indivíduo, como à sociedade.
Por isso mesmo, por existir dentro de nossas consciências, o mal é capaz de produzir resultados concretos no meio exterior. Dessa forma, o mal, que até então era efetivamente inexistente na natureza, nela produz efeitos reais, não em relação à natureza, mas somente em relação ao próprio ser humano.
O mal caminha, pois, de uma consciência para outra.
Essa capacidade de algo imaterial produzir efeito material é similar ao que ocorre com a própria consciência, que, embora não seja real no sentido de existir materialmente, produz efeitos visíveis, tendo sido o mais importante deles descrito por René Descartes: o simples fato de ser possível comprovar a existência do pensamento é capaz de comprovar que nós existimos enquanto consciências. É importante perceber que, para Descartes, a verdade mais real e intensa, aquela mais imediata e cristalina, é a existência do pensamento e não da extensão, que é a matéria.
Segundo o filósofo Heráclito, “nós vemos os opostos, o bem e o mal, mas Deus vê harmonia”. Com esse pensamento, Heráclito claramente assume que somente nós, seres humanos, é que percebemos, tanto o bem, quanto o mal. No que se refere ao divino, tudo que existe, existe em harmonia, em equilíbrio.
Protágoras afirmava que “o homem é a medida de todas as coisas e cada um tem o direito de determinar, por si, o que é o bem e o que é o mal”, querendo com isso dizer, segundo penso, que é o próprio homem a medida do que é o bem e do que é o mal. Cada pessoa, assim, terá uma definição de mal ou de bem particular, própria.
Em resumo, o bem e o mal existem enquanto existe o ser humano. Logicamente, essa afirmação pressupõe que somente os humanos, no universo, possuem consciência.
A necessidade de equilíbrio do homem com a natureza vem afirmada na máxima dos estóicos, segundo a qual o mais alto bem do homem está em agir em harmonia com o mundo.
Para Santo Agostinho, o mal é ausência do bem, da mesma maneira que as trevas são a ausência da luz, enquanto Abelardo entendia que justiça e injustiça de um ato não estão no ato em si, porém na intenção de quem o pratica. Em outras palavras, Abelardo desloca o mal para uma posição ideal, não real, de modo que o mal está na consciência de quem o pratica e não na atividade realizada, humana ou não.
Hobbes afirma que aquilo que agrada ao homem é bom e o que lhe causa dor ou desconforto é ruim. A afirmação utilitarista de Hobbes, filósofo classificado como materialista, atribui ao bem e ao mal uma natureza maleável, de modo que a mesma coisa pode ser entendida como bem ou como mal dependendo de como essa coisa foi percebida pelo homem, como um agrado ou como uma dor. Portanto, o mal pode ser produzido exatamente da mesma forma que o bem e assim será classificado pelo ser humano se a mesma atividade anteriormente prazerosa se apresentar dolorosa.
Muitas vezes, para os olhos de quem faz, o bem é o que foi feito; enquanto para os olhos de quem recebe a coisa feita, o bem é tudo o que ainda falta ser feito.
A filosofia taoísta, de onde provêm o yin e yang, feng-shui, acupuntura, I Ching, é uma antiga cultura de origem chinesa baseada na manutenção ou no restabelecimento do equilíbrio, do corpo, do espírito, de tudo; equilíbrio essencial para que a existência siga o fluxo natural de todas as coisas. Nós, humanos, não somos seres especiais, somos apenas seres, partes do todo, que, como tal, deve respeito à natureza de todas as coisas. Temos consciência e essa consciência deve ser utilizada de uma forma que não ofenda a nossa própria natureza e a natureza das coisas. A máxima taoísta é de que devemos nos sujeitar às coisas sem procurar descobrir suas causas. O taoísmo filosófico, não religioso, busca levar o homem a uma harmonia com a natureza através do livre exercício de seus instintos e suas imaginações. É, grosso modo, uma filosofia ecologicamente correta. A filosofia do taoísmo ilustra bem aquilo que afirmo: que, no geral, as respostas mais adequadas não estão nos extremos, mas no centro, em equilíbrio.
A filosofia grega igualmente pregava que o sentido de justiça e de verdade estava, não nos extremos, mas entre eles, em equilíbrio.
No que diz respeito à dicotomia bem-mal, concluo que, se filosofias tão diferentes, como a grega e a oriental, alcançaram idêntica conclusão no sentido de que a verdade e a justiça se revelam no equilíbrio, o equilíbrio é fundamental para o ser humano. A falta de equilíbrio pode ser mesma a razão de sua destruição, seja como indivíduo, seja como sociedade.
E concluo mais: que não existem o bem e o mal como verdades absolutas; o bem será aquilo que o ser humano deve fazer para evitar o desequilíbrio pessoal ou coletivo.
Se houver necessidade de conceituar bem ou mal, então o bem será o equilíbrio e o mal o desequilíbrio.
A manutenção da consciência livre do mal implica, pois, que a mantenhamos em equilíbrio. Equilíbrio com a natureza, equilíbrio com a coletividade.
Para entendermos o que é o desequilíbrio e como podemos alcançar o equilíbrio, há que percorrer a seara dos desejos possíveis e dos que racionalmente se deve evitar. Há que aprender o conceito de têmpera e a diferenciar covardia de resignação.
Por vezes, as pessoas se agarram fortemente a conceitos morais apenas para esconder suas fraquezas, seus medos. Isso, certamente, é um desequilíbrio.
Quando assevero que o mal é inexistente na natureza e que, por causa disso, o ser humano é absolutamente incapaz de realizá-lo, não estou afirmando a impossibilidade de sentir o mal ou que o mal não exerça influência. Como disse, somente nossas consciências (espíritos) não são forjadas pela matéria estelar, ou seja, não existem materialmente falando. Assim é também com o mal. Ele existe apenas em nossas mentes; é fruto da atividade mental.
O mal, portanto, somente é causado pelo homem e somente nele produz efeitos, sendo a consciência o seu berço e o seu túmulo ao mesmo tempo.
O bem e o mal estão em nossas mentes e dela são partes integrantes.
Como evitar o mal e manter o equilíbrio? Creio firmemente que o desequilíbrio indutor do mal é provocado pela inclinação que a pessoa tem a abrir mão completamente de sua vontade em benefício alheio ou em pensar exclusivamente em si sem considerar seu semelhante. Tanto o altruísmo extremo, como o egoísmo desmedido, são inclinações desequilibradoras.
Somos seres individuais e sociais. Temos necessidades individuais e sociais e temos a obrigação de satisfazer ambas. Visando somente os desejos da individualidade, ocorrerá egoísmo e isso irá ferir o outro; portanto representa o mal.
Almejando exclusivamente o desejo alheio, haverá abnegação extremada, anulação pessoal, e isso irá ferir-nos; igualmente representando o mal.
O equilíbrio que invoca o bem é representado, então, pela possibilidade de satisfação de nossos desejos individuais e sociais de forma harmônica, sem perder de vista que é impossível uma certa dose de frustração, seja individual, seja social.
Nunca poderá o indivíduo realizar tudo que deseja a sociedade, tampouco alcançará a sociedade anular completamente os desejos individuais, sob pena de tornarmo-nos quais formigas, onde somente o que interessa é a coletividade.
O indivíduo deve ser humilde para aceitar as limitações individuais em prol da sociedade, porém forte para impor sua vontade em face de impedimento decorrente de conceitos morais impostos pela sociedade, mas que não se sustentam na realidade natural.
Conceitos morais insustentáveis foram aos poucos, no decorrer da História, sendo derrubados justamente por contrariarem o equilíbrio natural das coisas. Preconceitos em função de orientação sexual, etnia, adultério, divórcio, são coisas que estão sendo superadas (ainda não o foram completamente), mas já constituíram fortíssimos obstáculos sociais à felicidade individual, ou seja, já representaram o mal. Existem assuntos ainda controvertidos, como aborto, mudança de sexo, manipulação genética e outros.
Compete ao indivíduo fazer todo o possível pela sociedade e esta deve aceitar toda vontade individual que não seja, por si, um perigo imediato para sua existência. O equilíbrio que conduz ao bem encontra-se a meio caminho entre as vontades do indivíduo e da sociedade.
Esse ponto no meio do caminho chama-se liberdade individual responsável.
A ninguém, em princípio, deveria ser dado o direito de dizer o que alguém deve ou não fazer, mas todos possuem o dever de zelar pela manutenção da liga gregária que une os indivíduos uns aos outros.
A pessoa religiosa possui o direito de ser contra o aborto, não realizá-lo e incentivar outros a não fazê-lo, mas não o de impor sua crença ao outro. O Estado não deveria proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, pois isso de forma nenhuma pode ofender a sociedade. Uma pessoa heterossexual não deveria sentir-se ofendida pelo casamento de dois homens ou de duas mulheres que sequer conhece. Isso não é racional, nem lógico.
O mal constitui-se dessa matéria, capaz de provocar sofrimentos inúteis no ser humano. De obrigar o ser humano a se resignar, a recolher seus desejos para o fundo da alma, com todas as neuroses daí decorrentes, sem qualquer necessidade coletiva palpável. Isso, esse desequilíbrio maligno, não existe na natureza, foi criado pelo ser humano para ofensa de outros seres humanos.
Um dos caminhos para libertar a consciência dos efeitos do mal é a tolerância com o próximo e com suas vontades, o equilíbrio com a natureza e com os demais seres, inclusive os humanos.
Escrito no período de 10 a 26 de outubro de 2006.
Revisado em 17 de novembro de 2010.

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