Imagine a seguinte situação absolutamente hipotética: você chega na sua mesa de trabalho e descobre que um colega comeu um bombom de sua caixa. O que você faria?
Se
você for uma pessoa equilibrada e altruísta, você terá colocado a
caixa de bombons à vista justamente porque queria que os colegas os consumissem.
Se
você for só equilibrado, mas não altruísta, sorrirá pela
sapequice do colega, mas não ficará demasiadamente aborrecido.
Se
for um pouco exigente demais, irá no máximo considerar que houve um
certo abuso e ficar chateado.
Se
for um ranzinza cricri, irá se queixar diretamente com o colega.
Se
além de ranzinza, for egoísta, irá se queixar ao chefe e pedir que
ele admoeste o colega de trabalho.
Se
for um celerado, um ególatra ou um completo retardado mental, você
irá a uma delegacia policial registrar queixa pelo crime de furto.
Agora,
se você for um delegado da Polícia Federal de Roraima, exercendo a
alta função de Corregedor, você determinará a um outro delegado
da Polícia Federal que conduza esse colega de trabalho, que lhe é
inferior, a uma sala de depoimentos na qual ele será interrogado por
uma hora sem a presença de um advogado e lhe será exigido que
apresente o papel que embrulhava o bombom, papel esse que será
apreendido, encaminhando-se o “inquérito” para o Ministério
Público Federal.
Você considerou essa última hipótese exagerada demais? De fato, põe exagerada nisso. Entretanto, parece que nossos homens públicos perderam de vez o senso do
ridículo e a noção de comedimento no exercício da função
pública. Isso foi exatamente o que aconteceu.
Segundo
noticiam os jornais e matéria transmitida no Fantástico, um delegado da Polícia Federal, que exerce a alta função de corregedor
da instituição, mandou autuar uma colega de trabalho humilde, que
exerce a função de faxineira, porque ela comeu um dos bombons que
estava em sua mesa.
Abuso
de autoridade é pouco para designar uma situação ridícula como
essa.
Afinal,
quanto custa um bombom? Uma caixa de Ferrero Rocher, marca que não é tão barata, com 15 bombons,
custa cerca de 40 reais, de modo que, cada um vale menos menos de três reais. Se for um bombom comum, custará menos de cinquenta centavos a unidade. Vamos imaginar, todavia, a partir da inacreditável dimensão do fricote policial, que é um mais caro.
E
quanto custa a hora de trabalho de um delegado da Polícia Federal?
Presumindo-se que o delegado que ouviu a mulher não esteja, nem no
início, nem no final da carreira, deve receber em média 18 mil
reais. Estando aparentemente sujeito ao módulo semanal de 40 horas
de trabalho, disso resulta 200 horas mensais, de modo que uma hora de trabalho custa 90 reais a nós, contribuintes.
Só
que a oitiva do acusado é realizada, no mínimo, por um delegado e
por um escrivão. Seguindo o mesmo raciocínio, um escrivão com salário médio de 10 mil reais
possui hora de trabalho no valor de 50 reais.
Mas
a conta não para aí. O arremedo de inquérito policial foi remetido
ao Ministério Público Federal. Um procurador federal terá que
lançar um parecer qualquer nesse amontoado de papeis inúteis, ainda que para
sugerir o arquivamento. Com um salário médio de 28 mil reais, a hora do procurador custa 140 reais.
Assim,
tem-se que, no âmbito federal, e sem considerar o trabalho de mais
nenhum servidor além de um delegado, um escrivão e um procurador, o
furto de um bombom de três reais custou aos cofres públicos pelo
menos 280 reais. O destempero, a arrogância e a falta de equilíbrio
emocional do respeitável corregedor da Polícia Federal custou o
equivalente a sete caixas de Ferrero Rocher, com 105 bombons.
Se
por um bombom de três reais a faxineira prestou depoimento e foi
autuada, o que merece esse delegado que causou ao Tesouro um prejuízo
de, no mínimo, 105 bombons?
Se
colocarmos nessa conta o custo do descrédito que essa demonstração
de desumanidade causou à instituição policial, esse delegado teria
que ser obrigado a prestar hora extra como faxineiro na Polícia
Federal por uns cinco anos para reduzir o prejuízo causado.
Não
bastasse o prejuízo financeiro causado ao erário, aparentemente o
delegado violou o direito de defesa da faxineira, pois não lhe
oportunizou ser acompanhada por um advogado, além de ter
ilicitamente colocado a máquina federal em andamento, pois a lesão,
se houve, foi particular, do próprio delegado, e não da Polícia
Federal, de modo que o caso teria que ser apresentado à Polícia
Civil e encaminhado ao Ministério Público Estadual.
Imagino que o delegado, por ser delegado, conhece bem o Direito Penal, tendo plena
ciência do princípio da insignificância, do chamado crime de
bagatela, que é justamente o que o nome indica, não precisa ser doutor em direito para saber. Não se dá
andamento a delitos de pouquíssimo impacto social, justamente pela
insignificância, que não justifica colocar em andamento o caríssimo
aparato repressor estatal. Se um bombom não é bagatela, jogue-se esse princípio no lixo doutrinário, pois não sei
mais o que isso significa.
Além
disso, é altamente duvidoso que o fato comezinho, essa bobagem, de um colega de trabalho
comer a comida do outro possa efetivamente ser considerado um furto.
Trata-se de questão menor, a ser solvida no próprio ambiente de trabalho
pelo superior hierárquico dos dois, se é que vale isso. A legislação do trabalho já
possui penalidades próprias para esse espécie de questiúncula. O delegado sovina poderia ter
solicitado à empresa prestadora que advertisse a faxineira.
Isso
me faz lembrar o caso de um presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ari Pargendler,
que, encolerizado, demitiu um estagiário do tribunal porque ele
ousara permanecer na fila da máquina onde o excelentíssimo ministro estava
realizando uma transação, permanecendo na fila mesmo após o todo-poderoso ter
determinado que ele se retirasse. O estagiário estava no local
certo, atrás da faixa, tendo para lá sido encaminhado por um
atendente do banco. Não tinha porque sair dali, salvo o gigantesco ego do superministro.
O
que leva alguém poderoso a colocar todo o peso de sua autoridade
sobre um desfavorecido, um zé-ninguém?
Há
poucos dias, em meu texto “O deputado e o motorista”, sustentei
que temos, por herança portuguesa, uma sociedade hierarquizada e
autoritária. Há, entre nós, uma forte tendência a sermos
autoritários em relação àqueles em face dos quais nos sentimos
superiores. Em grande parte da cultura europeia e na americana, é comum, entre superiores hierárquicos e seus
subordinados, entre parentes ou entre amigos, a existência de divergências
acaloradas sem grandes danos na relação interpessoal. É possível
vermos isso, por exemplo, nos filmes americanos, nos quais amigos
trocam sopapos e, cinco minutos depois, reconhecem reciprocamente o erro e se
abraçam. Relações interpessoais podem gerar tais situações de
stress e é sinal de amadurecimento saber superá-las.
No
Brasil isso é incomum. Pautados que somos pela supremacia da
hierarquia, esta permeia todas as relações, sejam parentais,
sociais ou profissionais. Os pais mandam nos filhos, os amigos mais
poderosos mandam nos menos afortunados e os chefes mandam nos
subordinados. Espera-se dos filhos, dos desafortunados e dos
subordinados não somente que obedeçam, mas que obedeçam de forma
resignada, talvez até demonstrando alguma satisfação ou prazer na
obediência, inclusive em relação a ordens abusivas. Em nossa cultura, vale ressaltar, até gostamos de obedecer
quando estamos por baixo e, por isso mesmo, não aceitamos que não
nos obedeçam quando estamos por cima. Há um quê de sadomasoquismo social nisso.
Isso,
contudo, embora seja parte considerável do que supostamente conduz o
mais poderoso a se tornar um opressor, não creio que seja suficiente
para explicar inteiramente o que leva certas pessoas a massacrarem de
forma tão brutal alguém que lhe é absurdamente mais fraca.
A
disparidade de poderes nos exemplos citados, que envolvem relações delegado-faxineira ou
ministro-estagiário, é tão abissal que naturalmente deveria
conduzir ao tipo de magnanimidade que em geral os poderosos gostam de
demonstrar em relação aos muito mais frágeis, notadamente quando existem testemunhos dessa demonstração de virtude. Fica bem no currículo.
Contudo,
parece que, em alguns casos, a fixação na contrapartida
mandar-obedecer vem acrescentado de uma boa dose de despotismo, que é
um vício complexo, formado pela junção de tirania com
perversidade.
A
arrogância e egolatria no poder é por si um grande problema. O despotismo é um
problema ainda maior. Existe em maior ou menor grau em quem se sente
desproporcionalmente poderoso e não possui freios éticos e morais
que mitiguem a vontade de oprimir a quem ouse divergir de sua mais
insignificante vontade.
O
déspota absoluto é absolutamente despótico. O déspota relativo é
relativamente um covarde, que só exerce o seu poder de opressão
sobre o fraco.
O
crime em tese de furto é subtrair, para si ou para outrem, coisa
alheia móvel. Como toda lei, essa tipificação é igual, exatamente
igual, para qualquer pessoa, rica ou pobre, fraca ou poderosa,
delegado ou faxineira. Contudo, arrisco-me a dizer que não existe
uma só pessoa sã e racional nesse Brasil inteiro que tenha alguma
dúvida de que o delegado somente autuou a mulher porque ela era
faxineira. Se as câmeras tivessem flagrado o superintendente da
Polícia Federal retirando e comendo um bombom na mesa do corajoso
corregedor nada teria acontecido. Repito: nada teria acontecido. No
entanto, a prevalecer o entendimento do corregedor, o crime seria o
mesmo e ele teria a mesma autoridade policial para efetuar a autuação.
Coragem,
coragem mesmo teria um delegado da Polícia Federal dando voz de
prisão a um outro delegado por um crime de bagatela, como fez o
bravo corregedor com a faxineira. Claro que isso não ocorreu e jamais ocorrerá.
O
Corregedor, assim como outras autoridades poderosas, sabe até que ponto pode
exercer o seu despotismo impunemente.
Espera-se
agora, para salvar a imagem da Polícia Federal, que esse policial
seja punido pelo abuso de autoridade e pelo prejuízo causado ao
erário público.
Será
que a Polícia Federal, como instituição, se revelará pusilânime?
Esperemos.
Enquanto isso, recomenda-se à faxineira, que está sendo apoiada pela OAB local, que acione pessoalmente o delegado em busca de reparação moral. Creio que será favas contadas se não tiver o azar de pegar um juiz de caráter igual ao do delegado.
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